sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Do baú do infante - O banho do Carolino

“Escreve aí aquela do Carolino”, disse-lhe o pai, numa segunda-feira de festa. Naquele tom, para o infante era uma ordem. Aqui fica, pois.
Costumava vê-lo na missa dos domingos, com o mesmo ar que tinha na fotografia do casamento dos pais. Homem de honra e palavra, nisso e no resto igual aos da idade dele, o Zé dizia que só tomara banho completo na véspera de ir às sortes, já lá iam mais de vinte anos. “O mais, se tiverem dúvidas, perguntem aí à Clara”. Porquê, para ir às sortes, não havendo notícia de nenhum preceito do RDM estipular a obrigatoriedade da barrela pré-inspectiva. Também não se sabia de ter morrido ninguém só por rejeitar a água e o sabão, ainda que Carolino tivesse como certo que o Cardoso morrera disso: “ É o és – à mulher disseram que a autópsia dera o resultado de ter ele morrido de indigestão ou de congestão, de uma coisa ou da outra, mas para mim, nem tinha sido preciso o doutor desmanchá-lo, que o homem morreu por causa do banho”.
Carolino banhou-se exactamente no mesmo sítio de onde tiraram depois o Cardoso.
“Tínhamos andado todos na borracheira a tarde toda, logo a seguir à missa, porque era um domingo; na segunda-feira é que íamos às sortes. De taberna em taberna, estivemos em todas, até que se fez de noite. Na taberna da Viúva é que estávamos a fazer a sossega; passando já da meia noite, eu saí para ir mijar. Cá fora não se via nada; quando eu agarrei no animal, devo ter tropeçado numa pedra e caí numa poça de lama que estava ali no meio da rua, para onde dois ou três estavam a mijar naquela altura. “Oh, oh!, o que foi aquilo?”, disse um deles, mas ninguém lhe respondeu. E eu muito calado, à espera que eles fossem embora, a sentir a água e a lama a passarem-me do fato para o canastro. “Estás fodido, Zé”, pensei ei, “que não tens outra fatiota para amanhã!”.
Quando os outros foram para dentro, pus-me de pé – com dificuldade, é claro, não por estar bêbedo, mas por causa do peso da lama que tinha agarrada a mim. E fui-me dali para fora”. Pelo caminho, a lama começou a secar; Carolino parou junto da azenha para vomitar; depois, esteve a dormir no palheiro do Joaquim Lopo, “num resto de caneirões de milho que ele lá tinha. Quando acordei, vocês imaginam, o fato era como uma sola que eu tivesse vestido, dura e inteiriça, eu mal me podia mexer dentro dela”, a cabeça a rebentar e os interiores num rebuliço; cheirava a mijo e a azedum, mas, apurando o nariz, Carolino teve a certeza de ter merda da verdadeira agarrada às botas.
Sentia-se enojado e com uma necessidade enorme de voltar a dormir; mas era preciso agir – dali a algumas horas (não sabia quantas) tinha de se apresentar na praça para ir com os outros à inspecção militar. Primeiro tirou as botas e a seguir despiu-se; a ribeira levava bastante água e, junto das pedras onde as mulheres costumavam lavar a roupa, teve a sorte de encontrar um resto de sabão, com que lavou a roupa e o corpo todo; de regresso ao palheiro, fez uma fogueira e nela secou o necessário, enquanto se ocupava das botas. Quando o relógio da torre deu as matinas, estava ele a enfiar as ceroulas, já enxutas como a outra roupa interior; mais atrasados estavam o casaco e as calças, que lhe haveriam de conservar o corpo húmido até à noite. “No dia a seguir ao das sortes, no outro e no outro, não saiu da cama, tolhido de todo por umas dores no corpo, nas pernas e nos braços. Tudo por causa do banho”.
Pior banho foi o do Cardoso, como já se sabe. Encontraram-no – o Chico Remeloso, o Albertino e o Zé Escada – muito desassemelhado, com o corpo todo roxo, inchado, metido num vasculho, que para lá o levara a corrente da ribeira, por sinal bem fraca naquele sítio já tão afastado do açude. “Não fosse ele tão bom homem, ainda agora aí havia de andar, mesmo tendo mulher tão ruim. Foi o caso, dizem, de ela deixar de cumprir a obrigação que toda a mulher tem com o seu homem, que para isso a gente se casa com elas, não é? Punha-lhe ela em cara, uma vez e outra, que ele cheirava muito mal, das partes e do resto, e que ele se haveria de lavar muito bem se a quisesse ter outra vez. Deu-se ele a cismar naquilo, cada vez mais, e, naquela noite depois da janta, sem poder aguentar mais o animal, se meteu à ribeira, a banhar-se, e lá ficou”.

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