segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O que escreve direito por linhas tortas

Encontrei-a em Paris, tinha eu pouco mais de 20 anos. A expressão do rosto era a mesma, serena como sempre, a pele lisa e imaculada, os mesmos olhos – toda ela sem marcas do longo “séjour parisien”, como se os anos não tivessem passado; o tronco despido, em ligeira torção, indiciava um movimento que lhe fizera escorregar ao longo do corpo, até se deter nos quadris, uma peça de vestuário de nome indefinido que lhe cobria, de forma irrepreensível, todo o hesmisfério sul – púbis, pudenda, pernas e quase integralmente os pés.

Tinha conhecido a senhora de Paris no Tortosendo, oito anos antes, ainda as missas eram ditas em latim, quando o vernáculo começava a invadir a liturgia, a começar pelo canto. E se nós cantávamos!, num êxtase que nos transportava a uma dimensão superior de comunhão com o indefinível (que o canto tem destas virtudes e a inocência dos 12 anos pode mais do que a razão ou a fé na maioridade), um coro de duzentas vozes seguindo o Reis, que todos chamávamos Regina, para distinguir a melhor voz que passou por aquela casa nos anos sessenta.

Ingressado dois anos antes na casa dos padres missionários da terra, vindo de umas berças menos frias, mais a sul, foi então que eu e a senhora de Paris nos começámos a dar, em boa verdade, eu mais do que ela; no princípio, uma coisa inconsequente e sem história, tudo muito calmo e sem sobressaltos dignos do nome; mas depois foi-se insinuando qualquer coisa, até que, um dia, em ofício canónico – cantava-se a “Miraculosa Rainha do Céu, sob o Teu manto tecido de luz...” – senti que ela se intrometia na minha intimidade com a Virgem da imagem posta na parede da capela, do lado da sacristia, onde ainda está. Uma súbita aflição suspendeu-me a projecção da voz, na incerteza de para qual das senhoras iam as minhas invocações de fé. Cheguei a temer uma súbita e prematura perda de vocação – que era o que os estudantes pobres mais receavam; pior, só a certeza de um futuro infeliz sem os imprescindíveis pilares da fé. Se todos temos um anjo da guarda, o meu tinha-me falhado na hora da maior precisão.

Como se sabe, havia na casa uns tantos livros profanos, sendo os de Karl May – “Pelo Curdistão Bravio”, “De Bagdad a Istambul” e “Winnetou”, em 3 volumes – os mais disputados. Àqueles, não obstante, eu sempre preferi dois calhamaços já bastante gastos, de conteúdo vário, por sinal muito pouco disputados pela população local. A obra era um digesto de “cultura geral” bastante ilustrado, em papel demi-couché de qualidade duvidosa, encadernação em inteira de pano cinzento-rato, tratando temas da maior transcendência, com salpicos de menor densidade, orientados todos eles à formação integral do indivíduo – para amostra, no primeiro volume, cito de memória: as formigas cinzentas do Calaári, os heróis esquecidos da Primeira Guerra Mundial, a história admirável das plantas carnívoras, ou como Leonidas foi derrotado nas Termopilas; também falava dos primeiros tempos da aviação, do governo no século de Péricles e da cultura helenística, estes no segundo volume. Um verdadeiro “livro da sabedoria”, brasileiro, editado provavelmente em São Paulo, no ano do centenário da independência.

Entre as duas Guerras, e mesmo uns anos depois, a ilustração dos livros fazia-se a preto e branco, uma técnica que, conjugada com a má qualidade da impressão e do papel, era capaz de transformar notáveis obras de arte em coisas manhosas de baixíssimo escalão. Tal foi o estado e as circunstâncias em que conheci a futura “senhora do Louvre”, que nem ia muito mal a preto e branco, a despeito da inferioridade dos materiais.

Da mesma forma que as vestais que hoje “fazem le trottoir” no 10º "arrondissement" de Paris têm pouco a ver com as de outro tempo, aquela senora que vi, desataviada, em Paris, dez anos depois, não era a mesma para quem tinham ido os mais piedosos “totus tuus” da minha vida. De todo! Ela tinha qualquer coisa de menos – e isso fazia toda a diferença.

Na altura, ainda não tinha sido construida a pirâmide de vidro, em frente do Louvre; tenho ideia de ter entrado do lado do Carrocel, a ala das antiguidades orientais: um curto estágio na fila para a compra dos ingressos e depois o périplo em passo acelerado por escadas, portas, corredores, guarda-vento, mais escadas, uma curta paragem no primeiro patamar, para admirar a Vitória de Samotrácia, que saudei no nosso primeiro encontro ao vivo; depois, mais escadas, mais corredores e salas, passando por matronas, senadores, deusas da caça, atletas, afrodites e outras celebridades várias do portfolio universal, algumas delas – a Vénus de Milo primeiro que todas – minhas conhecidas do in-folio de cultura geral do Seminário do Tortosendo.

Aparte a circunstância de estarem ali todos juntos, para mim era a nudez o que mais distinguia aquele olimpo de notabilidades. Nesse estado (nus, ou pouco menos) teriam parte deles entrado no original do “Livro da Sabedoria” da sala de estudo do meu terceiro ano, como Adão e Eva, antes do pecado; até um dia – aquele em que alguém descobriu, no vademecum duma discutível moralidade, que o nu mais inocente das artes entrava na categoria do menos próprio, do indecente. E foi assim que, empurrado por uma força sobrenatural e submetido a uma vontade de outro mundo, essa boa alma deu um passo para a imortalidade; e pegando no dito livro, a mão guiada por uma subtileza de ordem superior, o virtuoso artista vestiu, com caneta de tinta preta, um após outro, todos os corpos nus que encontrou impressos – nos homens, calções de perna muito decentes; nas senhoras, calção do mesmo modelo e um coletinho a resguardar-lhes o peito.

Deuses e heróis de antes e depois de Cristo ter andado no mundo, gente vulgar e assinalada, faunos, ninfas e graças várias, até umas quantas Virgens a amamentar Jesus – todos ele libertou da nudez, para fazer do tal alfarrábio um livro de virtude para consumo seminarístico. Seis dias durou a pulsão criativa do anónimo iconoclasta, que nesse entretanto não comeu nem disse missa; no sétimo dia, como fez Deus no episódio da criação, contemplou o trabalho feito e descansou na maior beatitude; a seu ver, a obra realizada era a expressão genuína do triunfo do bem sobre o mal.

Um milagre dos verdadeiros, foi o que ele fez, ou a mão de Deus, através dele; e eu, homem de pouca fé, curvo-me à invocação da sua memória – não fora o arrebatamento místico do artista anónimo, a minha Vénus de Milo seria como a dos outros, a fugaz emoção de um momento de passagem numa sala do Louvre. Não, a do “Livro da Sabedoria”, a Vénus de Milo dos meus doze anos, é outra coisa, muito mais do que uma obra de arte com prazo de validade na memória pessoal, muito por causa do curioso atavio com que o profanador sem nome lhe escondeu os seios: conferindo-lhe um certo recato, o coletinho acrescentou à beldade um toque de enigma e sedução, fazendo dela um estimulante desafio à curiosidade e à imaginação de um donzel da minha idade, ao tempo uma granítica vocação religiosa.

Quanto pode, em circunstâncias propícias, um coletinho de alças – desde que virtuoso!

  


A Vénus de Milo de toda a gente






















quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Falta de tempo para ler


“Eu também havia de ler muito, não fosse a falta de tempo e o facto de os livros serem tão caros”. Ernesto J., meu amigo.


Regresso à Biblioteca Municipal, depois de cumprida a penalização de 43 dias, por atraso na entrega dos livros do último abastecimento. Leitura para o fim-de-semana de três dias – escolha criteriosa e por isso demorada, que resultou em quinhentas e tal páginas de prosa distribuídas por quatro ou cinco volumezitos daqueles que ainda se conseguem meter numa pasta de estudante já cheia.


Andei de estante para estante, ao acaso, cultivando a dificuldade da escolha – primeiro, o périplo dos americanos (lembro-me de Roth, Cummings, Cormack e de ter passado, altivo, ao lado de velhas glórias em que costumo reincidir, como o Hemingway e o Saroyan; eu procurava o “Manhattan Transfer”, do John dos Passos), demorando-me depois nos europeus – os russos (está em projecto um retorno em força ao Dostoiewski, depois dos “Contos de São Petersburgo” acabados de ler) e outros que mais, ou autores-refúgio como o Coetzee, o Sarat Marai ou o Chatwin (“Anatomia da Errância”, nunca lido, está na lista dos próximos). As escolhas acabaram por ser um (velhito) Alberto Moravia – “Passeios africanos” (1987), conjunto de notas de reportagem de uma viagem em África, ainda jovem, como jornalista, por terras da Tanzânia, Gabão, Zaire e Zimbabwe –, “A linguagem dos pássaros” (2001), o primeiro de Ana Teresa Pereira que entra cá em casa, ficando em carteira algum mais dos que escreveu, com destaque para um volume de contos, e mais dois autores-refúgio: Paul Bowles (“Muito longe de casa” (1992), com paisagens, cheiros e gente da região do Niger, e Guillermo Cabrera Infante.


“É tudo um jogo de espelhos” (1999), do autor de “Três tristes tigres” (1964) ou “Havana para um infante defunto”(1979), entre outros, revelou-se, afinal, um livro de contos já lido, dando a este Pepe (que é uma forma de dizer José, em espanhol) a oportunidade de revisitar três histórias, daquelas de guardar: a primeira, de José Castro Espinoza, o tio Pepe de “O meu personagem inolvidável”, notável pela arte de ler jornais, pela sua boa voz, ouvido musical e o amor desmedido pela ópera, o seu interesse pelo desporto, a obsessão pela cultura e o fanatismo pela higiene corporal; oficial de detecção de fraudes, foi um fanático germanófilo e um incondicional da revolução cubana, tendo morrido em casa, de um problema cardíaco, um tempo depois de ter sido vingada a sua morte às mãos de uns índios mexicanos ainda fiéis a ritos canibais dos antigos maias; a segunda, tão verdadeira quanto pode ser uma história contada por uma sogra chamada Carmen, em cumprimento de uma promessa à Virgem do mesmo nome, chama-se “A voz da tartaruga”, na realidade uma caguama, cujo sexo – quase de mulher – deu fama a um rapaz da aldeia; a terceira e última trata de duas bengalas, ainda que o título só tenha uma: é a “História de uma bengala e algumas observações de Mrs. Campbell”, contada primeiro pelo senhor Campbell, escritor profissional, e corrigida, depois, pela sua senhora, Mrs. Campbell. Recomenda-se.


Escrevo na manhã do terceiro dia, que vou dedicar ao volume que resta por ler, o do Moravia. Se não se revelar de boa colheita, volto ao “Dublinesca”, do Enrique Vila-Matas, trazido de Bilbao este mês e já encetado.


terça-feira, 19 de julho de 2011

Aos inocentes patifes que puseram o colhão do Almeida na literatura universal


Para o Abel Martins

Conheci o Almeida no meu primeiro dia de vida profissional, sentado numa cadeira de pau, no seu posto de trabalho, com aquele vulto entre as pernas, salvo seja. “Já viste o colhão do Almeida?”, perguntou um dos rapazes a meio da tarde desse mesmo dia e eu disse que sim, com um certo acanhamento, ouvindo-se então um coro alarve de palavras fora da etiqueta, com muitos gestos a condizer, que me fez sentir bem naquele meio e membro do grupo de corpo inteiro.


O senhor Almeida era um homem de monossílabos e linguagem atabalhoada, em que aprendi a distinguir as palavras exactas a colocar nas requisições, como resma de papel almaço, “escamartilhão”, tinta para almofada de carimbo ou pasta forrada a papel diabo, com ferragem; na nossa ingenuidade dos dezasseis ou dezassete anos, dávamos-lhe a idade da sé de Lisboa, um tempo aliás suficiente para o seu particular adereço adquirir a envergadura conhecida por todos, granjeando ao seu distinto possuidor os nossos maiores respeitos. Era de admirar que só tivesse uma filha, e não se sabe quanto orgulho tinha no seu material.


Também eu levei um ou outro, dos que entraram depois na empresa, a ver aquela digníssima peça; Almeida arreliava-se com isso, e, nesses momentos, os seus monossílabos transformavam-se em palavrões medonhos em forma de balas arremessadas por um titã justiceiro, mas na verdade muito injustos para com os inocentes rapazes.


Com o passar dos anos, mais avinagrado ia ficando o Almeida. Um dia, com o prazo de validade há muito ultrapassado, disse “até amanhã”, como de costume, e não voltou ao Economato, passando à condição de reformado. Foi-se o homem com o seu adereço, mas deixou deste a memória, que nós tomámos como missão preservar na sua autenticidade e espalhar por onde pudéssemos. Quantas conversas entre nós, sobre o colhão do Almeida, e quantas vezes a história foi contada a terceiros, que a contaram a outros, que a contaram … sabe-se lá onde e a mais quem – do velho, do novo, deste e, calhando, até do outro mundo.


Até que, um dia, de mansinho, o tivemos de volta, em forma e na maior dignidade, aos ombros de Gabriel García Márquez, em “O Amor nos Tempos de Cólera”. Sai prosa:


“À água das cisternas foi atribuída durante muito tempo e com muita honra a hérnia do escroto, que tantos homens da cidade suportavam não só sem pudor como ainda com uma certa insolência patriótica. Quando Juvenal Urbino ia à escola primária não conseguia evitar um arrepio de horror ao ver os herniados sentados à porta das suas casas nas tardes de calor a abanarem o testículo enorme como se fosse uma criança que lhes tivesse adormecido entre as pernas. Dizia-se que a hérnia emitia um pio de pássaro lúgubre nas noites de tempestade e que se retorcia com uma dor insuportável quando queimavam por perto uma pena de galináceo, mas ninguém se queixava daqueles percalços, porque uma hérnia grande e bem conservada ostentava-se como um apanágio de homem.”


Mesmo quem nunca tivesse conhecido o senhor Almeida seria capaz de reconhecer neste excerto o colhão do velho ecónomo, que nós celebrámos durante tantos anos, e cuja fama conseguimos, sem desfalecimentos, levar tão longe e com tanto sucesso, ao ponto de torná-lo matéria-prima da melhor literatura.


Num mundo mais justo, Almeida haveria de descer à Terra, para agradecer aos inocentes patifes que, por muito falarem no colossal adereço, fizeram do seu titular personagem de romance.

Crónica de um pedaço de asno confirmado e de duas histórias por contar







“Não vem agora a propósito falar daquela noite que Fulano de Tal passou na velha Torre do Tombo. Ou a do colhão do Almeida, salvo seja! Prometo que um dia conto.”

Começava assim, sem mais nem menos, a última carta do Migo, que aqui dou por recebida e, pelo presente escrito, formalmente respondida. Para que conste. E dizia mais:

“Nem hás-de acreditar, mas até tem piada: agora durmo no meio dos livros, estás a perceber, rodeado de livros por todos os lados! O que tem o seu quê de problemático: numa abundância destas, para não me dispersar,sou forçado a uma disciplina de regulamento, focando-me no livro que tenho entre mãos, como se fosse o único na casa. Mas, sem deixar de praticar em vários, se for caso disso – que é mais ou menos o costume. Segue a ementa desta quinzena.”

Respiro, enquanto ele muda de linha e de parágrafo.

“Como livro de cabeceira, o quarto de crónicas, do Lobo Antunes (antes, hei-de ter lido dois dele, dessa especialidade), duas crónicas por dia, não mais que duas – uma à sossega, tipo chazinho para relaxar, antes de dormir, e outra ao ‘mata-bicho’, ainda na caminha, logo que se faz de dia. Numa das últimas que li, o grande Borges, em certo momento, diz à mulata ‘de madeixas desfrisadas e nádegas de alcatruz’ ‘sua jeitosona’, ‘ela a fender o alcatrão numa majestade de petroleiro a sair da barra’; a próxima, para logo à noite é sobre as missas em Nelas. Sabes que o homem faz traduções de latim para manter os neurónios oleados? É o que ele diz, como se a escrita não fosse exercício mental suficiente.”

Mais uma pausa, ponto e parágrafo.

“O livro de sair é ‘O Amor nos Tempos de Cólera’, do velho Gabo, numa ediçãoda Dom Quixote, com alguns erros pelo meio, mas bom!, bom!, bom! Se o céu se ganhasse com escrever bem, sendo Deus imensamente justo e bom, como é suposto, a Gabriel Garcia Márquez bastaria este livro para ingressar na eternidade – ainda que ele fosse o maior dos pecadores. Que história bem contada, que escrita magistral, que prazer ler uma prosa assim! De tal maneira que uma pessoa está a ler e até parece que está dentro do livro, não como personagem, mas como se o livro tivesse sido escrito por mim. Estranho, não é, Tê? O Cardoso Pires – meu oráculo nestas coisas de escritas e de livros – classificou-o como o melhor romance jamais escrito. Anda comigo todo o dia e uso-o quando posso – no intervalo entre a sopa e o bacalhau do almoço, na travessia de barco para Cacilhas ou enquanto uma reunião não começa. Um prazer imenso, que é o que deve ser a leitura, no antes e no depois de um juramento de fidelidade eterna e de amor para sempre, repetido ao fim de um interregno de cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias depois, na primeira noite de viúva daquela que fora a prestimosa esposa do doutor Juvenal Urbino, o médico que logo no princípio do livro vemos a perder a missa do domingo de Pentecostes, em tarefas de validação da morte de um tal que se matara com cianeto de ouro, num quarto com cheiro a amêndoas amargas, precisamente no dia em que o (também) doutor Lácides Olivella celebrava, com um almoço de gala, as suas bodas de prata profissionais. Vou a pouco mais de meio.

Este, como disse, só o leio fora de casa, nos dias de trabalho – faz parte da farda.”

Tanta explicação, meu Deus! Vá lá, digo eu, fecha o assunto, meu amigo – que, se não me engano, ainda há mais livros.

“Agora vem o mais curioso – e eu sei que tu achas piada a isto: sem nenhum objectivo em especial, peguei no “Viver para Contá-la”, um escrito autobiográfico do próprio Garcia Márquez. Umas centenas de páginas com histórias da vida do homem, desde a infância à idade adulta, com uma leveza, uma graça, uma qualidade de escrita que só lendo. Com a particularidade de aí aparecerem personagens e episódios (a mulher que come terra, ou o velhote que fabrica peixinhos de ouro, ou a sensação da mão que se pôs num bloco de gelo) que encontramos, um tanto mudados, na ficção do autor, designadamente no ‘Cem anos de Solidão’ ou – como vou descobrindo por estes dias – em ‘O Amor nos Tempos de Cólera’. Este, leio-o na casa de banho lá de casa, invariavelmente, antes (à noite) e depois (de manhã) das crónicas do doutor Antunes.“

Eu não dizia? Precisamente. Para continuar assim:

“Lembras-te do jogo que a D. Natália punha os inocentes da Primária a fazer em “Geografia de Portugal”, com o Thomaz e o Salazar pendurados na parede em frente? Aquele assim: ‘um pedaço de terra, rodeado de água por todos os lados, é uma ilha; um pedaço de terra rodeado de água por todos os lados, menos por um, é um cabo; um burro rodeado de cabos por todos os lados é um sargento; um pedaço de água, rodeado de terra por todos os lados, é um lago; um homem rodeado de terra por todos os lados é um morto; um pedaço de água, rodeado de terra por todos os lados, menos por um, é um istmo.’ Adivinhasse eu que haveria de dormir nestes preparos, havia de ter-lhe perguntado como se designa um homem que dorme rodeado de livros.

Que há-de ter um nome, não é, Tê?”

Continua a ser o que era – no caso, um pedaço de asno, quase gritei, farto de conversa.

Agora já mais calmo: continua a escrever, Migo, e manda lá aquelas histórias de que falas. O teu amigo merece!

domingo, 1 de maio de 2011

Ainda na pista de Javier Mariño - A paixão das primeiras edições assinadas (parte 2)

Confessar que voltei ao bar da travessa da Água de Flor não será propriamente uma vergonha; ainda assim, saibam que foi num dia de grande abatimento físico e moral que o Agostinho Frade me arrastou (é uma forma de dizer) para aquele antro, uma quinta-feira. Eu não estava no meu juízo – um homem de certa compostura, vestido como se fosse a ver Deus, acompanhado por um tipo com um ar desgraçado (posto que sem cheiro, apesar dos quatro dias já passados sobre a barrela semanal, nos Banhos de São Paulo, ao Cais do Sodré), para o baixote e sobremaneira peludo, envergando conjunto de camisa grená-laranja e calça preta, mocassins cremes e meias também pretas. Um mimo, pese embora a ausência de barba, ou bigode.

No Lindoso, não havia onde pôr um pé e a animação era grande. Sentámo-nos perto da entrada, bem apertados, por falta de espaço, e ele encomendou bebidas – uma vez, outra e não sei quantas vezes mais, sempre ele; a mulher que trazia as bebidas, com um vestido azul a denunciar-lhe a barriga indecente e o excesso de carnes, não tinha um minuto de descanso, entre actos de serviço “sempre-a-aviar” e respostas aos desafios e apreciações que lhe chegavam de todos os lados – tudo no maior respeito, pois sendo a casa de gente séria, ali não se admitem faltas de respeito a quem trabalha. Um pouco aturdido com o ambiente, bastante quente e suado para o meu gosto, praticamente sem espaço para me mexer, que me deixei ir na conversa, quando se desatou a língua ao meu companheiro. “Não sei já te falei dela”, começou ele, em tom meio íntimo, demasiado próximo do meu ouvido, referindo-se à mulher que todas as quintas-feiras à noite fazia encher aquele bar da travessa de Agua de Flor, ao Bairro Alto em Lisboa. Tinha sido por ela que o ex-futuro padre me levara ali, e eu convencido que ia por causa do Guedes e do “meu” livro de don Gonzalo.


Tinha o nome de Rosa e uma cara que era só olhos – grandes, provavelmente cinzentos, capazes de cegar um pobre com fome. Movia-se com grande à-vontade entre todos aqueles homens, na cara um ar místico digno de Santa Juana de la Cruz. Não parecia ser mulher daquele tipo de ambientes; de igreja, sim, sem dúvida.

Extraordinária a altivez daquela mulher, movendo-se entre as mesas apinhadas de homens, todos a quererem ser servidos por ela, batendo-se por uma palavra sua ou por um olhar, comendo-a com os olhos, ela tão inacessível quanto desejada. Vinha todas as quintas-feiras, depois das onze, quando a casa já estava a rebentar pelas costuras e nessas noites trabalhava-se até muito mais tarde, as bebidas e as mulheres, mesmo as mais velhas e gastas, sempre a saírem.

Frequentava Santa Isabel; sendo nova na comunidade, era estimada por todos; sabia-se que, durante a semana, cumpria um estrito programa de boas obras, visitando os doentes. Fiel ao mandamento de “não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita”, guardava recato sobre essa espécie de penitência, que não deixava de intrigar mentes mais analíticas, antes mesmo de o número de doentes (homens) acamados da paróquia ter aumentado duas vezes, uma torpeza a ser desmascarada no futuro.

Chegou a bichanar-se que ela se deitava com eles, os velhos das casas aonde ia, ou lhes mexia por baixo dos cobertores e até se falava de quanto recebia por cada visita e de coisas que lhe davam e das propostas para lhe porem casa, comentários a que ela respondia encolhendo os ombros, sem dizer nada, cada um ficando no que lhe parecia. Que, em boa verdade, até eu, depois de a ver, tenho a certeza de que, mesmo velho, só um cego não se quereria deitar no mar daqueles olhos, inquestionavelmente verdes para uns, para outros sem dúvida azuis, nem que fosse para neles se perder.

Que nada disso, confessava-me o "padre" Agostinho, à saída do Lindoso naquela quinta-feira: ela ia às casas dos velhos para lhes fazer companhia, se já não podiam sair de casa, a dar-lhes conversa, com a bênção da família chegada, num caso ou noutro a ler-lhes as passagens dos seus romances preferidos ou de algum velho livro de religião, tudo – sempre – na maior decência; se tanto, uma carícia nas costas da mão, descendo do pulso até à ponta dos dedos, ou uns afagos por cima da roupa de quarto aos acamados, mas sempre – ele podia jurá-lo – na maior pureza de actos e pensamentos.

Num excesso de intimidade, foi explícito sobre os seus planos de vida a dois, com ela, no recato de Santa Rosa do Douro, ou do Zêzere, não estou certo; senão, que se havia de matar. Na despedida, perguntou-me pelo Guedes, se sempre o tinha encontrado, para acrescentar com a dignidade e convicção possíveis num bêbado: “Depois de te falar dele, da outra vez, soube cá umas coisas do tipo, que espero sejam mentira; se não, vai ser muito mau para ele. Palavra de Agostinho.”

domingo, 17 de abril de 2011

[XN] Quase cem anos antes, visitação e devassa em São Vicente e outras terras

São as denúncias que alimentam a Inquisição e um dos meios de as obter é levar os que são presos, por culpas de judaísmo, a denunciar conhecidos e parentes. Mas há outros meios, como seja enviar um visitador a uma terra, para recolher denúncias.
Foi assim, no ano de 1617, na vila de São Vicente. E isto mesmo fizeram em todo o bispado da Guarda, entre 1607 e 1625, no tempo dos senhores dom Filipe II e dom Filipe III.
No mês de Junho daquele ano de 1617 esteve o visitador do Santo Ofício, Simão Cardoso de Sampaio, na igreja do Convento de Santa Clara, acompanhado do escrivão; no domingo anterior, tinha havido procissão pelas ruas da vila, com a participação das autoridades civis e religiosas. Já então estariam afixados na porta da igreja matriz o Monitório, o Édito da Fé e o Édito da Graça, o primeiro com indicação dos crimes de judaísmo que deveriam ser denunciados - o descanso ao sábado e a celebração desse dia, os jejuns de segunda e quinta feira, a circuncisão dos rapazes, não se comer certas coisas, como toucinho, ou lebre, ou aves afogadas, nem peixe sem escama, ou a prática de rituais diferentes com os mortos, ou outra forma de abater os animais, a prática do grande jejum de Setembro, ou a benção dos filhos, pondo-lhes as mãos sobre a cabeça; também já fora publicado o Édito da Fé e o Édito da Graça, estabelecendo este que no prazo de 30 dias cada um se apresentasse a confessar culpas próprias e a denunciar culpas alheias; por esta via, recebiam indultos e, sendo achados culpados, se livravam de lhes confiscarem os bens.
Na igreja do Convento de Santa Clara, em São Vicente, apresentaram-se três pessoas, a conselho de seus confessores, para descarregarem suas consciências. Todas elas mulheres: Maria de Brito, casada com Constantino Fernandes, Guiomar Nunes e Maria Fernandes, ambas viúvas. Primeiro, juraram sobre os Santos Evangelhos dizer a verdade e guardar segredo perpétuo de tudo o que dissessem ou ouvissem em tal lugar, sobre qualquer pessoa que fosse, viva ou morta. Depois disso, o visitador mandou vir duas testemunhas, para que confirmassem as denúncias feitas pelas 3 mulheres, o que elas fizeram na Igreja Matriz.
Foram 15 as pessoas denunciadas pelas mulheres: Gaspar Mendes e sua irmã, Beatriz; Rodrigo Nunes, sua mulher Violante e a irmã desta, Clara; Clara Rodrigues e Beatriz, sua irmã; Simoa de Lucena, Gaspar Lucena e a mulher deste; Guiomar Nunes, Beatriz Fernandes, Maria Henriques, Branca do Porto e Ana Fernandes. Redigidos pelo escrivão da Visitação, Domingos Gomes, e assinados pelo escrivão e pelo visitador , Simão Cardoso de Sampaio, foram os mesmos remetidos ao Vigário Geral da Guarda, para que os enviasse ao Santo Ofício, para proceder "em conformidade".
Constança Nunes conhecia estas práticas, ao menos por ter ouvido contar, que a memória dessas atrocidades passa dos pais para os filhos e destes para os netos. Ao menos, para se acautelarem. Pelos mesmos anos que andaram em devassa em São Vicente, os da Inquisição fizeram outro tanto na vila de Idanha-a-Nova, a terra de morada dos pais e de nascimento de Constança.

domingo, 3 de abril de 2011

[XN] Segunda Estação - Constança Nunes na prisão: frio e medo


Com 50 anos, que eram quantos ela tinha, Constança Nunes era uma mulher velha quando foi presa, em Janeiro de 1706, no dia 13.Viúva de Francisco Lopes, levaram-na de São Vicente sabia lá ela para onde – tanto podia ser para Coimbra, Lisboa ou Évora, sendo que qualquer desses destinos era tão mau como os outros.

Ia acusada de praticar a religião dos judeus, sozinha ou com outras pessoas, um crime contra as leis do Reino.
“Tenho medo. Não é tanto da escuridão deste lugar, nem da fome e sede, nem dos bichos que por aí andam, nem dos barulhos que se ouvem à noite; nem mesmo do mal que me queiram fazer – tudo isso, sendo medonho, eu sei que sou capaz de aguentar. A ideia da morte também não será, que não me dá medo pensar que vou morrer. Não sei porquê, se será uma razão ou mais que uma, mas sinto um medo de morte. O frio também é muito e enorme o desconforto e a falta de tudo; o corpo é como se não fosse meu. Ouvi dizer que estou nos Estaus, no palácio deste nome – a filha de um sapateiro de Idanha-a-Nova a morar em Lisboa, num palácio! Mais propriamente, nos fundos do palácio, umas masmorras penetradas pelo bafio e a humidade. Ontem, sentia a cabeça a rebentar, mas hoje está pior; penso nos filhos e nos parentes, e na desgraça da nossa vida. E choro.”
Cristãos-novos é como lhes chamam, há duzentos e tantos anos, desde que o rei D. Manuel os mandou juntar em Lisboa, amontoando-se uns vinte mil no Palácio dos Estaus, ao Rossio, onde os aspergiram com água, declarando-os por esta forma baptizados e convertidos à religião cristã. Sem o pedirem, ou sequer desejarem, tinham entrado na condição de judeus, com a promessa de embarcarem em segurança para outro país em que os tolerassem, saindo de lá cristãos-novos. E não somente eles, mas todos os judeus portugueses e os seus descendentes. Muitos outros tinham sido baptizados e convertidos à força, e, sendo menores de 14 anos, tirados aos pais e entregues a famílias cristãs.
Quem primeiro prenderam em São Vicente foi Maria Nunes, no dia 12 de Abril de 1704, e três dias depois levaram sua irmã, Isabel Henriques Nunes; depois, em Novembro do mesmo ano, o irmão de Constança Nunes, Antão Vaz Ribeiro, no dia 7, e, no dia 10, a mulher deste, Isabel Ferreira. Uma razia naquela família, e em São Vicente, onde todos eram moradores, sendo que Maria Nunes e Isabel Nunes de lá eram também naturais. O nome de Constança Nunes aparece nos processos de todos eles na Inquisição de Coimbra; nos termos da justiça inquisitorial, na condição de denunciantes, aqueles são dados como testemunhas de acusação no processo de Constança Nunes, na Inquisição de Lisboa. Enfim, o modelo de denúncia secreta a funcionar em pleno, alargando em contínuo o raio de acção do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal.
“Depois do meu irmão e outros parentes, agora sou eu a estar presa, e depois serão outros e mais outros. O meu nome o terão arrancado a alguém, que não sei quem é, se morto ou vivo. De mim, hão-de querer arrancar outros nomes, de gente que comigo tenha guardado o sábado e feito o jejum grande dos judeus, e saber se rezámos as orações dos cristãos ao nosso modo. Antes, já me terão tirado os bens. Em tudo isto eu penso, aqui cheia de frio. E tenho medo do que aí vem.”

domingo, 27 de março de 2011

O fascínio das primeiras edições assinadas

As mãos pequenas e sapudas, com restos de tinta ou de estuque, que ele ia raspando com a unha do polegar da mão direita, identificavam-no como operário, estucador ou pintor de móveis; não parecia nada o Guedes que eu procurava. O local também não era dos mais óbvios para tratar de livros, que era a razão de eu ali ter vindo, ao número 38 da travessa de Agua de Flor, por coincidência o mesmo bar frequentado pelo Jesus, nos seus primeiros anos de Lisboa.

O nome do estabelecimento estava pregado na parede do lado de fora, num letreiro em muito mau estado, e para entrar afastava-se uma cortina grená que servia de porta nas horas de expediente. A mesma que dera passagem a Esteres, Rosas, Judites e outras profissionais do meio (que tinham feito da casa uma das mais afreguesadas do bairro), ao Paulo de Jesus e à mulher do cabelo preto – dizia-se espanhola e declarava chamar-se Mercedes – que, durante dois a três anos de rédea curta, lhe interditou o acesso a outras mulheres e o trouxe lavadinho, bem comido e a cheirar bem, animando-lhe ainda a boa vida com uma cena semanal de ciúmes, a cobrar-lhe as idas aos Alunos de Apolo, nos sábados, precisamente o dia em que as senhoras do Lindoso Bar tinham mais saída. Até um dia: “Passei o táxi, estás a ver”, disse-me em data incerta, já chefe de família, ali no passeio em frente do Almarjão (mestre livreiro, para que conste); “deixei a vida e entrei na Polícia de Costumes com carta de chamada do meu primo Rui. É verdade: ter uma mulher na praça é melhor do que ser dono de um táxi, mas passa-se muito; e ser uma autoridade é outra coisa, outro respeito. E dá para ter família, entendes?” Eu compreendi e nem sequer estranhei ver o nome dele no jornal, no tempo em que o tribunal de Santa Clara escreveu páginas notáveis na justiça pátria, convertendo torcionários do tempo da outra senhora em escriturários e motoristas, apenas honestos, amantes da ordem e tementes a Deus. Ele foi um desses. Ao que sei, continua a portar-se como um bom cristão e, apesar de uma trombose que teve, é o principal organizador dos encontros anuais do pessoal da Companhia 237, que fez serviço em África, em 63.

“O Pablo e o Guedes chegaram a ver-se lá no bar da Travessa, mas, se lhes perguntares, nenhum conhece o outro”, disse-me o José Frade, que chegou quase a ser padre e foi alferes em Angola, onde conheceu Jesus. “Se não tiver o livro que procuras, o Guedes arranja-o, podes ter a certeza. Mas se queres ter sorte, não fales no meu nome, nem ligues ao aspecto da casa, nem à pinta do homem”, concluiu o meu alferes, a despachar-me.

O padre Frade sabia do meu interesse em primeiras obras assinadas pelos autores; já me tinha referenciado umas tantas e chegara mesmo a oferecer-me, por um valor muito acima das minhas posses, o número de estreia da revista Orpheu, que encontrara numa “casa amiga”, no Porto, assinada pelo Pessoa e pelo Almada Negreiros. Também ele parava no Martinho, onde só mexia, sem comprar nada, para desespero do dono da casa, que se lhe referia, geralmente, em termos pouco elogiosos.

Carlos Martinho, o meu livreiro de confiança, não trabalhava com primeiras obras assinadas; mas sabia de casas onde eu poderia encontrá-las e, a pedido, encaminhava-me para lá. Quando lhe falei no tal Guedes, não reagiu: fiquei com a impressão de que não conhecia tal gente.


Uma certa tarde, depois de passar a cortina grená que tapava a entrada do bar, fiquei no ponto de mira do homem e das duas mulheres, cada um sentado em sua mesa. Chegado àquela hora, eu só podia ir ao engano: os fregueses só começavam a entrar mais tarde, para frequentarem as senhoras, mas a casa deixava vir mais cedo as que quisessem, para estarem ali entretidas na conversa, descansando do trabalho da noite, sem filhos a puxar-lhes pelas saias, nem homens em cima. Nessas horas, aquelas damas meio gastas pelo muito uso não falavam de trabalho e todas usavam os nomes de baptismo, num ambiente de paz doméstica, em que não se estranharia ver uma delas, com um pano de linho no colo, semeando nele passarinhos azuis ou flores encarnadas e verdes. Guedes nunca parava ali a outras horas. Mesmo de manhã, antes do trabalho, e depois, o seu poiso era na rua da Barroca, no Ferra-Mulas, com o cordial da ordem ao mata-bicho e uma zurrapa meio doce a fazer boca para a refeição, antes da uma. Isto, nos dias de semana, pois nos domingos (“dia de banho, de ceroulas lavadas e de cuidar da canalização”, no seu dizer, com uma piscadela de olho) ninguém o via.

José Guedes pareceu um pouco importunado por ter de falar de trabalho fora do horário de expediente, mas lá foi ouvindo ao que eu ia e quem era o objecto da minha cobiça: “Javier Mariño”, o livro de estreia em ficção de Torrente Ballester, publicado pela Editora Nacional, de Madrid, em 1943. “Não tenho ideia do que procura”, foi-me ele dizendo; “se, como diz, é uma primeira obra, proibida, há-de ser difícil de arranjar." Para depois acrescentar: "Curioso, esse seu don (adivinhei-lhe um certo desdém nessa forma de se referir a Gonzalo Torrente Ballester, que considerei extensiva a este seu dedicado leitor, e não achei graça nenhuma), simpatizante falangista, a levar porrada da censura do Franco! De facto, não conheço e, por isso, não tenhas grandes esperanças, meu filho! Mas vou tentar.” O aperto que me deu no braço, a despedir-se, com um piscar de olhos para uma das matronas – entretanto, mais duas tinham-se juntado ao convívio de “antes da ordem da noite” – e aquele tratamento pretensamente íntimo irritaram-me bastante menos do que os remoques ao meu sacrossanto Ballester, afinal de contas com algum fundo de verdade.

De tão frustrado que estava, ao sair daquela espelunca, lembrando-me de umas certas apreciações de um livreiro meu amigo, a propósito do tal ex-futuro padre que me mandara àquele lugar, nem sei como não tomei a decisão de me ir confessar ao bom do Martinho, por me ter deixado arrastar por más companhias. Uma vergonha!

domingo, 6 de março de 2011

[XN] Prenderam Constança Nunes


Prenderam Constança Nunes. Tem à roda de 50 anos e não sabe ler, nem escrever, como as mais da sua idade e até mais novas. Moradora na vila de São Vicente, no bispado da Guarda, mas nascida em Idanha-a-Nova, o pai, João Mendes, sapateiro, casou-se aqui com Branca do Porto, sendo que antes fora casado com Leonor de Paiva, a mãe de Constança. Filhos seus, tem 2, um filho e uma filha.

Traziam um papel escrito os que a prenderam, diz-se que por causa de ser da religião dos judeus que mataram Cristo na cruz. Antes dela, Constança, o Tribunal da Santa Inquisição já pilhou cá, em São Vicente, outros seus parentes, homens e mulheres. Para onde a levaram, não se sabe.

Sim, ela tem alguma coisa de seu – uma casita e algo mais. Mandava o tal papel, com que a prenderam, que ela levasse roupa de cama, e roupa de uso, a que precisasse; e até 60 mil réis em dinheiro para seus alimentos, para ser entregue ao Alcaide dos cárceres secretos da Santa Inquisição.

Corre o mês de 9vembro de mil sete centos e cinco annos, reinando em Portugal D. Pedro II, nos livros de História chamado “o pacífico”.
[ Foto de José Teodoro Prata - http://dosenxidros.blogspot.com ]