domingo, 8 de maio de 2016

a marca dos avelares

Há em Lisboa uma pequena biblioteca pública, a de São Lázaro, tida como a mais antiga da outrora capital do império. intitulado Aventuras galantes, que tinha chapado na capa o nome do autor de Gargântua e Pantagruel. Pensando tratar-se de uma pantagruélica obra, para mim desconhecida, de François Rabelais, um autor de referência do século XV, o livrinho era, afinal, uma colectânea de textos libidinosos, escritos por um antepassado nosso, ali do Barreiro, de sua graça Joaquim Alfredo Gallis.
Martinho, o dos livros, disse-me que as obras literárias de Gallis não vêm no “Antigo Testamento das boas leituras”, que é como quem diz A Escolha de Livros, do padre Zacarias de Oliveira, acrescentando que um exemplar deste lhe foi às mãos altura da “santíssima queda”, apressando-se a traduzir: «o ano de 68, quando o “santinho de Santa Comba”. Foi então que adoptei o Zacarias como guia, sexta edição».
Publicou aquele Joaquim Alfredo mais de uma trintena de livros de conteúdo atrevido, com títulos do tipo Diabruras de Cupido, O marido virgemSensações fortesNoites de Vénus, Lascivas, ou As mártires da liberdade , que se venderam à socapa, na capital e arredores, durante muitos anos, assinando-se o autor como Rabelais, mas também com outros nomes, como Kin-Fóo, Ulisses ou Barão Alfa, reservando o seu nome verdadeiro para escritos sobre matérias com outra dignidade. Nos primórdios do Estado Novo os seus livros ainda davam boas tiragens; depois, praticamente finou-se. «Nos anos 70,», prosseguiu o Martinho, «já ninguém se lembrava dele. Então, a estrela da literatura picante, por assim dizer, era uma obra, e não um autor – por sinal, anónimo – com relevantes serviços prestados na formação sentimental dos rapazes das classes populares.»
Já a abanar, na mão esquerda, um folheto em deplorável estado, o livreiro Martinho atirou-se à erudição.
«Qual marquês de Sade, qual Casanova, e outros como eles, sequer o Harold Robbins, os consagrados! É de produção nacional a obra que alimentou, no tempo do “santo das botas”, a imaginação do rapazio pré-adolescente de aquém e além Tejo, em Portugal. O título, já de si uma promessa, muito embora indeclinável em família, era A marca dos Avelares.» Exactamente o folheto meio a desfazer-se que o livreiro brandia na minha direcção.
A história e o contexto do sucesso da obra são conhecidos, como adiante se explica.
Querendo satisfazer a natural inclinação para os clássicos, nos anos sessenta, o rapaz ou rapariga dirigia-se à biblioteca (havendo tal coisa na paróquia), perguntando pelas obras do Eça de Queirós. A Cidade e as Serras ou A Morte de Jesus? Não senhor, porque esses não eram do programa. Eles procuravam Os Maias e O Primo Bazílio, para, com preocupações de exegese – nem tudo na época era despudor! – pesquisarem os parágrafos mais estimulantes e inspiradores, para degustação em privado, com a adequada demora. Nobre juventude!
Invariavelmente, havia uma senhora, com funções de guarda dos livros da biblioteca, e por extensão, guarda dos costumes, que, no espírito da “ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933”, se encarregava de fazer em fanicos o entusiasmo juvenil, aniquilando com uma só frase a audácia de quem se propunha, pela mão do Eça, entrar no templo da grande literatura. “Esses não são livros para ti”, rezava a sentença; sendo mais diligente – também acontecia – a santa senhora fazia-se pedagoga: “Vê aqui nesta estante, onde estão os livros adequados para a tua idade.” Sendo mansos, como era o caso, saíamos de lá com dois livros para meninos, que haviam de ser devolvidos sem mácula, nem uso, no prazo regulamentar.
Outra vez o Martinho: «A moralzinha do “obedece e saberás mandar” poderia ter matado, desta forma, uma geração inteira de futuros leitores. Mas, não: quando uma porta se fecha, logo outra se abre – querendo espreitar a literatura picante pela porta dos Maias, mas encontrando-a fechada, os rapazes entraram nela pela porta dos Avelares
Tem o seu quê de estéril a discussão do papel que desempenhou A Marca dos Avelares na formação da juventude, os estragos que fez nas muralhas do pudor e das virtudes, os efeitos do vernáculo nos costumes, na imaginação e no desenvolvimento emocional dos frequentadores. Passemos à frente. Dos sobressaltos que essa leitura clandestina provocou em rapazes com fama de inocentes, atormentados pelo medo de serem surpreendidos pela mãe em transes pecaminosos, estamos falados. «Um bálsamo, por assim dizer, um conforto, para o corpo e o espírito, foi o que foi esse folheto estimulante, que andou por aí, de mão em mão, por empréstimo, lido uma e muitas vezes, clandestinamente, antes de a sua devolução ser reclamada pelo legítimo proprietário. Não tinha muito que ler, é um facto, e a linguagem da sensualidade era desbragada, crua até doer, com a particularidade de os termos obscenos serem grafados em maiúsculas. Nesses particulares não havia outro que se lhe igualasse – nem o nosso Rabelais, nem mesmo A Torre de Babel, ou A porra de Soriano, um hino em verso com que Guerra Junqueiro celebrou a virilidade de Pedro Soriano, condenado em finais de Oitocentos por facínora, na justiça e na opinião pública, e degredado.
Marca dos Avelares, em papel de má qualidade mimeografado, com um agrafe enferrujado a juntar as folhas, circulou subterrâneo, entre amigos e conhecidos, sem constar nas listas da Censura, nem – que eu saiba – nos registos das apreensões policiais. Tal como os escritos do nosso Rabelais, também não constava na “bíblia” do padre Zacarias. Que brindava Os Maias, do Eça, com três estrelas, a significar “reservado a adultos com maturidade nervosa e conhecimentos dos problemas da vida, exigindo sólida formação religiosa, moral e cultural”, dando O Primo Bazílio como “livro proibido pelas autoridades religiosas”. Se frequentou a obra de Gallis e A Marca os Avelares, sua reverência calou-se e deles não deixou referência no livrinho das boas leituras. Por pudor, ou porventura por não atinar com a classificação que lhes havia de atribuir.
«Fosse como fosse», acrescentou o Martinho, «o livro do padre Zacarias, tiro-lhe o chapéu por isso, foi para muita gente, eu incluído, um valioso conselheiro. Por ele elaborei a minha lista do que devia ser lido – que era, simplesmente, A Escolha de Livros ao contrário: no topo da lista, os que ele declara proibidos tornaram-se as leituras prioritárias; a seguir, de leitura obrigatória, os que ele classifica com três estrelas, carregados de reservas. Já adulto, apesar de tudo, fui incluindo na minha ementa algumas obras que o jesuíta, pelo seu critério de valor cultural e religioso, considerou boas leituras. Foi assim», concluiu Martinho, «que se formou o leitor e nasceu o livreiro.»
Como o Martinho, outros fizeram o mesmo.
Um relevante serviço, prestou à cultura o livrinho do padre Zacarias de Oliveira. Não era, afinal, o que ele queria?

Sebastião Baldaque
notas
1. Sobre Joaquim Alfredo Gallis (1859-1910) veja-se “Rabelais», isto é, Alfredo Gallis, o pornógrafo”, de António Ventura, que serve de posfácio ao livro Aventuras galantes (Ed. Cavalo de Ferro, 2014).
2. O juramento imposto aos funcionários públicos, a partir de 1936 (Decreto-Lei n.º 27.003, de 14 de Setembro de 1936) era do seguinte teor: «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.»

3. O padre Zacarias de Oliveira usou uma classificação, muito pessoal, do valor cultural das obras que referencia, identificando os leitores a quem se aconselhava (ou reservava) a sua leitura. De forma simplificada, as boas leituras, por escalões etários – “para crianças”; “para adolescentes”, “para rapazes dos 15 aos 18 anos”, “para raparigas dos 15 aos 18 anos”, e “leituras para todos, com mais de 18 anos”; depois, uma categoria de livros para adultos, a ler com precaução, com a condição de “maturidade e sólida formação cultural, moral e religiosa”. Os desaconselhados distribuem-se por vários escalões, de brando a severo, culminando em “N-Livros sem valor cultural ou literário e com ideias ou situações condenáveis”, no patamar dos proibidos, os códigos DC e I, respectivamente “Livros atingidos pela doutrina geral do cânon 139 do Código de Direito Canónico” e”Livros incluídos expressamente no Índice” (o velho Index Librorum Proibitorum – Índice dos Livros Proibidos, criado em 1559, com a aprovação do papa Paulo IV, sucessivamente actualizado, cuja última edição data de 1948; o papa Paulo VI aboliu-o em 1966. Na edição citada, mantêm a classificação I, por exemplo, toda a obras de Zola, Stendhal, Balzac e Sartre,  ou Madame Bovary, de Flaubert). Para uma informação mais completa, consultar o original – A escolha de livros, nova edição, Casa da Boa Imprensa, no Porto, 1966.

quarta-feira, 20 de abril de 2016


no dia mundial do livro
 
LER É MAÇADA

Já conhecia ambas, a primeira, de ter ouvido falar; a segunda, de uma visita anterior. São sítios onde se vai aos livros, para ver e comprar. Como eu fiz. O Miguel Ferreira levou-me lá, a Hay-on-Wye, num sábado de manhã; a ida a Óbidos, num fim-de-semana, este Inverno, foi prenda da namorada.

Hay-on-Wye (na língua da terra o nome da localidade é muito mais complicado, mas aqui não vale a pena entrar em pormenores) é na fronteira entre o País de Gales e a Inglaterra (Maria Filomena Mónica, que também por lá andou, reincidindo, dá testemunho interessante sobre essa “terra dos livros” no recente A minha Europa, ed. A Esfera dos Livros, 2015).

A vontade de empreender a viagem começara numa anterior estada na capital do Reino Unido, que incluiu deambulações pelos alfarrabistas de Charing Cross Road e a frequência de uma feira de profissionais livreiros na cave de um hotel, na Russel Square, ao lado do Museu Britânico. Ali comprei uma biografia de Dom João de Castro, em língua portuguesa, escrita por Jacinto Freire de Andrade, uma bonita edição in octavo da Typographia Rolandiana, 1786. Nunca tinha pago um valor tão alto por um livro, 75 libras, e durante algum tempo duvidei que tivesse feito uma boa compra; percebi que tinha feito bem quando li, bastante mais tarde Rubens Barbosa de Moraes: «nunca se arrependa por não ter comprado…». Enquanto me aliviava daquela verba, o livreiro, compondo um personagem menos vitoriano, foi-me sugerindo que colocasse Hay na agenda: «a cidade dos livros, não conheces? Vem gente de todo o mundo, bibliófilos e curiosos. Must gooo

Estava frio, na ida a Hay-on-Wye, alguma neblina; enquanto por lá andámos, uma cacimba desagradável estabilizou-nos a temperatura corporal em níveis para o baixo. Um tempo de excepção foi o que tivemos – bom tempo, quero dizer, que o mais comum, lá, é chuva a sério e mais frio. Os locais pareceram-me deslocados para tais geografias: nós perfeitamente ambientados, roupinha quente, um impermeável, eles de roupa ligeira, muitos em t-shirt de meia manga. Com aquelas temperaturas, em tais preparos?! Duvidei que cheguem a velhos – ou não tem nada a ver?

Quem colocou Hay-on-Wye no mapa foi um senhor, pelos vistos voluntarioso, de sua graça Richard Booth, ao declarar a independência de Hay e proclamar-se rei do lugar, nomeando o seu cavalo como primeiro- ministro. Estava-se no “dia das mentiras”, 1 de Abril, em 1977, o ano da fundação do reino dos livros. A ideia de base parece ter sido a criação, a nível local, de uma indústria de turismo centrada no comércio do livro, que Sua Majestade projectava como remédio para a continuada decadência da localidade, atolada na inércia, e sem motores de desenvolvimento económico. O próprio rei Ricardo Coração de Livro (Richard Booth) abriu a sua primeira livraria em 1961, ainda lá está, em Hay. O livro em segunda mão é a alma de Hay-on-Wye, numa filosofia de que todo o livro é valioso e para cada livro existe um cliente.

Ao todo, em Hay-on-Wye, são uns 25 pequenos negócios de venda de livros, a que se juntaram mais recentemente lojas de outros tipos de artigos; uma velha fábrica, uma capela e mesmo o castelo são locais onde se vendem alfarrábios e outros manuseados, vulgaridades e raridades, a bons preços. Há-as especializadas (infantil/juvenil, viagens, comics, crime e mistério, etc.) e as generalistas; e também vendas ao ar livre, como vem nas fotografias do lugar. De todas, preferi a Addyman Annexe e a (não podia ser outra) Richard Booth, que se ufana de ser a maior loja, em todo o mundo, de livros em segunda mão. Trouxe de lá um Humours of History, verdadeiro manual de interpretação humorística de 160 episódios da História de Inglaterra – a colheita possível, que nas primeiras visitas, se me deslumbro, a compra me é sempre penosa, pelo muito que tenho de rejeitar. De todo o modo, um dia de papinho cheio.

A Óbidos era uso ir-se pela ginja, o passeio na muralha, a paisagem envolvente e para lhe percorrer as ruas; os mais afortunados ficavam de um dia para o outro. Há uns anos, conheço eu quem fosse lá ao Festival do Chocolate, passando meio dia a tentar estacionar, para sete minutos de degustação do santo cacau tratado com competência e imaginação – a quê mais podia aspirar um justo?

O homem dos livros em Óbidos foi – ainda é – um senhor chamado José Pinho. Tinha fundado a Ler Devagar, um espaço livreiro que se dá a frequentar em Alcântara, numas antigas instalações industriais, que agora levam o nome de LX Factory. Em Óbidos, o projecto (já completo?) é de 12 livrarias, incluindo duas infantis. Querendo, pode-se conferir a filosofia do conceito numa entrevista de Pinho, na revista Ler, de Setembro de 2013, e a sua aplicação, in loco, em Óbidos.

Desfrutei, especialmente, de três livrarias de Óbidos: primeira, a Santiago, instalada numa antiga igreja, desactivada, generalista, cheia de luz e de livros, um prodígio de design interior ao serviço da nova função, operada (a livraria de Óbidos) pela editora/livraria Letra Livre (conhecem? ali na calçada do Combro, e agora com um espaço aqui mesmo ao lado, na rua da Guiné); segunda, a Livraria alfarrabista generalista da Adega, no Espaço Ó, à entrada da localidade, e, terceira, a Livraria do Mercado, aquela onde mais me demorei e enfeirei com critério, Urbano, Régio, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, coisas velhas, um de cada. Outra surpresa, da oferta estalajadeira da Vila Literária foi a estadia, pernoita incluída, literalmente no meio de livros – assim é, agora, o antigo convento (concluído, afinal, fora de tempo, em 1830, tempo de secularização, pelo que não chegou a receber religiosas), que virou hotel literário, as paredes forradas de estantes, livros nos espaços de estar, de comer, de dormir. Também vendem livros – foi de lá que a namorada trouxe uma velha edição inglesa de Mulherzinhas, da avó Louisa May Alcott, que a Portugália publicou, há uns anos, referenciando a obra da autora como literatura aconselhada a meninas adolescentes. Para conferir, querendo.

No Dia Mundial do Livro, tem sentido celebrar Pinho e Booth – faça-se! E celebrar Óbidos e Hay-on-Wye – ir lá, podendo. Quanto ao mais, tivesse eu discípulos ou filhos, e valessem as minhas opiniões alguma coisa, eles festejariam este Dia Mundial, concedendo-se um dia de descanso – não lendo, que de leituras, também há que descansar. Para, no dia seguinte, voltar ainda com mais prazer à rotina. A eles, aos livros!

Sebastião Baldaque