a marca dos avelares
Há em Lisboa uma pequena biblioteca
pública, a de São Lázaro, tida como a mais antiga da outrora capital do
império. intitulado Aventuras galantes, que tinha chapado na capa o
nome do autor de Gargântua e Pantagruel. Pensando tratar-se de uma
pantagruélica obra, para mim desconhecida, de François Rabelais, um autor de
referência do século XV, o livrinho era, afinal, uma colectânea de textos
libidinosos, escritos por um antepassado nosso, ali do Barreiro, de sua graça
Joaquim Alfredo Gallis.
Martinho, o dos livros, disse-me que as
obras literárias de Gallis não vêm no “Antigo Testamento das boas leituras”,
que é como quem diz A Escolha de Livros, do padre Zacarias de
Oliveira, acrescentando que um exemplar deste lhe foi às mãos altura da
“santíssima queda”, apressando-se a traduzir: «o ano de 68, quando o “santinho
de Santa Comba”. Foi então que adoptei o Zacarias como guia, sexta edição».
Publicou aquele Joaquim Alfredo mais de
uma trintena de livros de conteúdo atrevido, com títulos do tipo Diabruras
de Cupido, O marido virgem, Sensações fortes, Noites de
Vénus, Lascivas, ou As mártires da liberdade ,
que se venderam à socapa, na capital e arredores, durante muitos
anos, assinando-se o autor como Rabelais, mas também com outros nomes, como
Kin-Fóo, Ulisses ou Barão Alfa, reservando o seu nome verdadeiro para escritos
sobre matérias com outra dignidade. Nos primórdios do Estado Novo os seus livros
ainda davam boas tiragens; depois, praticamente finou-se. «Nos anos 70,»,
prosseguiu o Martinho, «já ninguém se lembrava dele. Então, a estrela da
literatura picante, por assim dizer, era uma obra, e não um autor – por
sinal, anónimo – com relevantes serviços prestados na formação
sentimental dos rapazes das classes populares.»
Já a abanar, na mão esquerda, um folheto
em deplorável estado, o livreiro Martinho atirou-se à erudição.
«Qual marquês de Sade, qual Casanova, e
outros como eles, sequer o Harold Robbins, os consagrados! É de produção
nacional a obra que alimentou, no tempo do “santo das botas”, a imaginação do
rapazio pré-adolescente de aquém e além Tejo, em Portugal. O título, já de si
uma promessa, muito embora indeclinável em família, era A marca dos
Avelares.» Exactamente o folheto meio a desfazer-se que o livreiro brandia
na minha direcção.
A história e o contexto do sucesso da
obra são conhecidos, como adiante se explica.
Querendo satisfazer a natural inclinação
para os clássicos, nos anos sessenta, o rapaz ou rapariga dirigia-se à
biblioteca (havendo tal coisa na paróquia), perguntando pelas obras do Eça de
Queirós. A Cidade e as Serras ou A Morte de Jesus?
Não senhor, porque esses não eram do programa. Eles procuravam Os Maias e O
Primo Bazílio, para, com preocupações de exegese – nem tudo na época
era despudor! – pesquisarem os parágrafos mais estimulantes e
inspiradores, para degustação em privado, com a adequada demora. Nobre
juventude!
Invariavelmente, havia uma senhora, com
funções de guarda dos livros da biblioteca, e por extensão, guarda dos
costumes, que, no espírito da “ordem social estabelecida pela Constituição
Política de 1933”, se encarregava de fazer em fanicos o entusiasmo juvenil,
aniquilando com uma só frase a audácia de quem se propunha, pela mão do Eça,
entrar no templo da grande literatura. “Esses não são livros para ti”, rezava a
sentença; sendo mais diligente – também acontecia – a santa
senhora fazia-se pedagoga: “Vê aqui nesta estante, onde estão os
livros adequados para a tua idade.” Sendo mansos, como era o caso, saíamos
de lá com dois livros para meninos, que haviam de ser devolvidos sem
mácula, nem uso, no prazo regulamentar.
Outra vez o Martinho: «A moralzinha do
“obedece e saberás mandar” poderia ter matado, desta forma, uma geração inteira
de futuros leitores. Mas, não: quando uma porta se fecha, logo outra se abre – querendo
espreitar a literatura picante pela porta dos Maias, mas
encontrando-a fechada, os rapazes entraram nela pela porta dos Avelares.»
Tem o seu quê de estéril a discussão do
papel que desempenhou A Marca dos Avelares na formação da
juventude, os estragos que fez nas muralhas do pudor e das virtudes, os efeitos
do vernáculo nos costumes, na imaginação e no desenvolvimento emocional dos
frequentadores. Passemos à frente. Dos sobressaltos que essa leitura
clandestina provocou em rapazes com fama de inocentes, atormentados pelo medo
de serem surpreendidos pela mãe em transes pecaminosos, estamos falados. «Um
bálsamo, por assim dizer, um conforto, para o corpo e o espírito, foi o que foi
esse folheto estimulante, que andou por aí, de mão em mão, por empréstimo, lido
uma e muitas vezes, clandestinamente, antes de a sua devolução ser reclamada
pelo legítimo proprietário. Não tinha muito que ler, é um facto, e a linguagem
da sensualidade era desbragada, crua até doer, com a particularidade de os
termos obscenos serem grafados em maiúsculas. Nesses particulares não havia
outro que se lhe igualasse – nem o nosso Rabelais,
nem mesmo A Torre de Babel, ou A porra de Soriano, um hino em verso
com que Guerra Junqueiro celebrou a virilidade de Pedro Soriano, condenado em
finais de Oitocentos por facínora, na justiça e na opinião pública, e
degredado.
A Marca dos Avelares, em
papel de má qualidade mimeografado, com um agrafe enferrujado a juntar as
folhas, circulou subterrâneo, entre amigos e conhecidos, sem constar nas listas
da Censura, nem – que eu saiba – nos registos das apreensões
policiais. Tal como os escritos do nosso Rabelais, também não
constava na “bíblia” do padre Zacarias. Que brindava Os Maias, do
Eça, com três estrelas, a significar “reservado a adultos com maturidade
nervosa e conhecimentos dos problemas da vida, exigindo sólida formação
religiosa, moral e cultural”, dando O Primo Bazílio como
“livro proibido pelas autoridades religiosas”. Se frequentou a obra de Gallis e A
Marca os Avelares, sua reverência calou-se e deles não deixou referência no
livrinho das boas leituras. Por pudor, ou porventura por não atinar com a
classificação que lhes havia de atribuir.
«Fosse como fosse», acrescentou o
Martinho, «o livro do padre Zacarias, tiro-lhe o chapéu por isso, foi para
muita gente, eu incluído, um valioso conselheiro. Por ele elaborei a minha
lista do que devia ser lido – que era, simplesmente, A
Escolha de Livros ao contrário: no topo da lista, os que ele declara
proibidos tornaram-se as leituras prioritárias; a seguir, de leitura
obrigatória, os que ele classifica com três estrelas, carregados de reservas.
Já adulto, apesar de tudo, fui incluindo na minha ementa algumas obras que o
jesuíta, pelo seu critério de valor cultural e religioso, considerou boas
leituras. Foi assim», concluiu Martinho, «que se formou o leitor e nasceu o
livreiro.»
Como o Martinho, outros fizeram o mesmo.
Um relevante serviço, prestou à cultura
o livrinho do padre Zacarias de Oliveira. Não era, afinal, o que ele queria?
Sebastião
Baldaque
notas
1. Sobre
Joaquim Alfredo Gallis (1859-1910) veja-se “Rabelais», isto é, Alfredo Gallis,
o pornógrafo”, de António Ventura, que serve de posfácio ao livro Aventuras
galantes (Ed. Cavalo de Ferro, 2014).
2. O
juramento imposto aos funcionários públicos, a partir de 1936 (Decreto-Lei n.º 27.003,
de 14 de Setembro de 1936) era do seguinte teor: «Declaro por minha honra
que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de
1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.»
3. O
padre Zacarias de Oliveira usou uma classificação, muito pessoal, do valor
cultural das obras que referencia, identificando os leitores a quem se
aconselhava (ou reservava) a sua leitura. De forma simplificada, as boas
leituras, por escalões etários – “para crianças”; “para
adolescentes”, “para rapazes dos 15 aos 18 anos”, “para raparigas dos 15 aos 18
anos”, e “leituras para todos, com mais de 18 anos”; depois, uma categoria de
livros para adultos, a ler com precaução, com a condição de “maturidade e
sólida formação cultural, moral e religiosa”. Os desaconselhados distribuem-se
por vários escalões, de brando a severo, culminando em “N-Livros sem valor
cultural ou literário e com ideias ou situações condenáveis”, no patamar dos
proibidos, os códigos DC e I, respectivamente “Livros atingidos pela doutrina
geral do cânon 139 do Código de Direito Canónico” e”Livros incluídos
expressamente no Índice” (o velho Index Librorum Proibitorum – Índice
dos Livros Proibidos, criado em 1559, com a aprovação do papa Paulo IV,
sucessivamente actualizado, cuja última edição data de 1948; o papa Paulo VI
aboliu-o em 1966. Na edição citada, mantêm a classificação I, por exemplo, toda
a obras de Zola, Stendhal, Balzac e Sartre, ou Madame Bovary,
de Flaubert). Para uma informação mais completa, consultar o original – A
escolha de livros, nova edição, Casa da Boa Imprensa, no Porto, 1966.