domingo, 19 de abril de 2009

Ratos de biblioteca

“Senta-te e escreve o que te vou dizer”, dizia a mãe em voz de comando que não admitia réplica, tão pouco hesitação – é fazer logo e perguntar depois!

Ora essa! Como se o escrever exigisse posição sentada! Hemingway, o de "Fiesta", d' "O Lobo do Mar" e de "Paris é uma Festa" - os meus preferidos de toda a sua obra) - escrevia de pé e não consta que lhe faltasse onde se sentar. E não foi o único escritor com esse hábito, que eu saiba.

Essa gente da escrita tem as manias de qualquer um – numa certa parte da sua vida, Borges costumava guardar o dinheiro entre as páginas dos livros (em sua casa havia-os por todo o lado), a biblioteca convertida, assim, em banco privado desse homem cuja vida se plasma num pano de fundo feito de livros, como leitor, escritor ou como Guarda-Mor dos Livros da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, apesar disso capaz de conservar somente o que valia a pena (mesmo tratando-se de livros, que uma biblioteca não é um depósito de ferro-velho): Jorge Luís desfazia-se dos livros que não lhe interessavam, “esquecendo-se” deles onde calhava, em cafés ou no banco de um jardim.


O meu amigo A.B. comprava livros como fazia as compras lá para casa, sem distinguir o necessário do supérfluo: via, comprava, por impulso e sempre em quantidade que se visse – eu via-o mais como compulsivo e, confesso, no que respeita aos livros, essa sua atitude compungia-me. Numa das últimas em que me exibiu os resultados do seu mais recente raide predador, umas duas dezenas de volumes, de temática variada, concluiu que já ia em mais de oito mil volumes! Verdade se diga que cheguei a ter inveja do personagem – o dinheiro dele na minha mão daria outros frutos mais interessantes, menos quantidade, mas, seguramente, uma mão cheia de “coisas boas” – uns quantos alfarrábios dos tais, só um, acaso, muito suado e longamente desejado, que, desses, cada um tem os seus.

A.B. tinha o fascínio pela quantidade – de livros, quantos mais, melhor, como os contos de réis. Por aquele caminho, ia convertendo a casa da Cruz de Pau numa “Biblioteca do Congresso”: não os mais de 100 milhões de espécies da Library of Congress, entre manuscritos, mapas, fotografias e outros materiais não livro, 10 mil incorporações diárias; “uma coisa mais pequena, mas, ainda assim, “suficientemente grande para o nosso meio” (palavra do senhor).

Pensasse ele, a sério, nestes números e, decerto, se haveria de converter à sabedoria de Don Rigoberto (Mario Vargas Llosa – Los Cuadernos de Don Rigoberto, 1997), possuidor de quatro mil livros e cem imagens, entre litografias, xilogravuras, desenhos, óleos, aguarelas – nem mais um ou uma, cada nova aquisição determinando a saída de um exemplar existente, inflexível quanto ao número de espécies das suas biblioteca e pinacoteca. Os livros e gravuras rejeitados, Don Rigoberto, o das orelhas grandes, queimava-os, para não sujeitar outros a lê-los e a vê-las.
Não lhe cabendo em casa tantos livros, A.B. fez uma selecção dos menos interessantes e, sem a sabedoria de Borges, nem a coragem radical de Don Rigoberto, levou-os para uma sua casa, para os lados de Sintra, e lá os deixou entregues a ninguém – mais rigorosamente, aos ratos. Está averiguado que foi a humidade, o pó e a bicharada que enterraram as hipóteses de a Cruz de Pau vir a ter o nome escrito numa futura lista das maiores bibliotecas do mundo. Consta, por outro lado, que é do acto do meu amigo que procede o nascimento da primeira comunidade de ratos de biblioteca da encosta norte da Serra de Sintra.

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SOPA DE BELDROEGAS



Ingredientes:

4 alhos franceses

4 cenouras

2 cebolas

1 molho de beldroegas

2 colheres de sopa de azeite

Sal q.b.



Cortam-se os alhos franceses, as cebolas e as cenouras.

Levam-se ao lume no azeite, deixando refogar em lume brando.

Junta-se 1,5 litros de água morna, tempera-se com sal e deixa-se cozer.

Quando estiver quase cozido, juntam-se as beldroegas cortadas.