domingo, 14 de novembro de 2010

O conde 100 milhões, o do "exemplar único" dos Sermões


Em circunstâncias normais, os caminhos do senhor conde nunca se cruzariam com os meus. Achei curiosa a sua entrevista àquele jornal diário, edição de domingo, arrumei-a na caixa do material efémero, e pronto, nada mais. Assunto arrumado e esquecido, não fosse o caso de a vida ter certas coisas.

No dia 30 do mês passado estive de novo com ele, na sua casa da Linha, a falar do mesmo livro. Como da primeira vez, o cão esteve sempre ali, a assistir; à entrada rosnou-me de forma desagradável, e à saída tentou ir-me às canelas. Sua Aristocracia continua a dar-lhe ordens em Inglês.

Paz do Amagal, o conde, vale para cima de 100 milhões, o montante da sua carteira de investimentos em empresas; em imagem, andará pelo triplo daquele valor. Cotado em várias praças europeias e norte-americanas, carros e casas constituem o restante património do senhor – a casa da família, em Mangualde, praticamente uma ruína deixada em herança pelo pai, agora restaurada, é o ex-libris patrimonial do actual titular; vale uma pequena fortuna.

Para lhe ilustrar o título, o ex-estudante de Cambridge decidiu agora fazer uma biblioteca valiosa. Disse-o com todas as letras ao tal jornal, onde o mostravam com um alfarrábio aberto, em inteira de pele, de rosto vistoso, possivelmente um tratado de religião do tempo de D. João V. Podia o senhor conde ter feito como um outro rico, também famoso, que mandou forrar um enorme escritório da habitação com estantes de parede inteira, totalmente preenchidas com umas largas centenas de lombadas brilhantes, agrupadas por temas, predominando as de cor vermelha, com ferros e letras gravados a ouro, havendo-as também azuis e castanhas; mas, não: livros a sério, mesmo sem serem muitos, queria o conde, raros e valiosos; ”se possível”, proclamava com humilde presunção, “duas ou três ou quatro obras que nem a Nacional, Coimbra e Mafra tenham”.

O meu interesse em ganhar dinheiro, vendendo-lhe aquele que passava a ser o único exemplar de uma edição princeps que os especialistas davam por inteiramente perdida, e alguns consideravam inexistente, pareceu-lhe trivial. Foi disso que falámos no nosso primeiro encontro. E nem o preço lhe pareceu muito elevado, a confirmar-se a valia do livro de que falávamos; teria, isso sim, eu compreendia, não é verdade, que falar com alguém, um entendido, só para ter a certeza de que estava a fazer a compra certa, pelo preço justo, não para confirmar o que quer que fosse, mas apenas para justificar o dinheiro que lhe pagava para o ajudar nestas coisas. Ah, e teria de ver o livro, que era o que, a partir daquele momento, mais queria. Num extremo de entusiasmo, declarou-me, em inglês, que me queria ver de novo, ali, o mais depressa possível. Posto o que, o rafeiro inglês e o conde de Alcatruz me conduziram à saída.

Também eu queria vê-lo. Liguei à senhora que me tinha rogado o livro, semanas atrás, num sábado de feira, no Largo de Santa Clara; em vão: “não está”, “ninguém sabe por onde é que ela anda, de vez em quando desaparece sem dizer nada”, “não, não somos família, a casa é dela, eu estou cá por esmola”, “se quiser deixar recado, se eu a vir…” e coisas do género, no primeiro telefonema e seguintes. Uma semana inteirinha nisto, todos os dias, sem eu dizer nunca ao que ia. Comecei a ver a vida a andar para trás. Cheguei a telefonar ao Martinho, meu supremo guia nesta coisa dos livros velhos, sem lhe abrir o jogo: “Se esse livro aparecesse aí no mercado, era a notícia de abertura de todos os telejornais! Até o grão-mestre da Maçonaria ia de joelhos beijar a mão ao cardeal-patriarca! Era bom, era, e que viesse ter aqui à minha loja! Agora o menino, sempre tão racional, também acredita que las hay? Deixe-se lá disso e venha mas é visitar o seu amigo, que tenho cá muita coisa boa que lhe interessa. Considere-se osculado, mê’migo. Mande sempre.”

Confesso que senti suores frios ao pensar que a senhora poderia ter-se evaporado. Com método, sem pressas, revi o filme dos acontecimentos: o nosso encontro, sem nos conhecermos de lado nenhum, à porta daquele alfarrabista acidentalmente fechado, por falecimento de uma pessoa de família, ela a abrir a mochila verde-azeitona e a tirar de lá o livrinho, com uma encadernação bastante cansada, mas com o miolo em excelente estado, a dizer numa voz sussurrada “Exemplar único”, e eu a confirmar, ali mesmo, a ausência de qualquer carimbo no livro e que tinha as páginas todas. “Como preciso de dinheiro urgentemente”, dissera ela, “vendo por 5 mil euros; com tempo, nos Estados Unidos, conseguia fazer trinta vezes mais”. Disse-me que sabia do que falava, acrescentando que não lhe perguntasse onde arranjara o livro, mas que estivesse descansado, porque não era roubado.

Quando me ouviu tartamudear a sugestão de lhe dar uma resposta, “digamos, daqui a uma semana”, ela percebeu que eu estava a pensar na velha história do vigésimo premiado. Mas, eu insisti que tinha de falar com umas pessoas mais entendidas em tais matérias e de receber uns dinheiros, acrescentando “afinal ainda é uma verba bastante elevada”. Nos olhos dela eu via claramente umas asas de anjo pregadas nas minhas costas, no momento em que me veio à ideia a entrevista do conde, vislumbrando que aquele podia ser o meu dia de sorte. Cinco dias, nem mais um, “descontando o domingo”, foi o prazo dado pela donzela, pelo qual eu lhe daria mais dez por cento.

Antes de falar com o conde, a primeira vez, eu já sabia que o livrinho cumpria os requisitos de Paz do Amagal –ausente das obras de referência dos livreiros-antiquários e dos catálogos das bibliotecas de livro antigo, toda a gente do meio, com quem falei, declarou como desconhecida a obra que eu me propunha vender ao senhor de Alcatruz.

Depois de uma semana terrível em que fiz tudo para a encontrar, passou mais uma semana, e nada. Atado de pés e mãos, num desespero, eu só não queria que o conde me procurasse. Telefonou-me no dia dos meus anos e fui lá estar com ele. Podia ter sido pior, confesso, mas foi muito, muito mau.

Estava feliz, o homem, quando me recebeu. “Sit”, ordenou ao rafeiro, que obedeceu; sem me cumprimentar, fez o elogio do livro que eu me propusera vender-lhe, pegando nele e afagando-o com as costas da mão direita, passando depois o polegar a todo o comprimento da lombada, da base para a cabeça, demorando-se nas nervuras, em movimentos lentos, de extrema sensualidade, que não interrompeu durante a nossa conversa.

Havia um forte contraste entre o conforto da sala-biblioteca do conde de Alcatruz, onde estávamos, e o desconforto interior que eu sentia em crescendo, que mal conseguia dissimular. Era claro para mim que tinha sido ludibriado pela donzela da mochila militar; mas, o ricaço e eu tínhamos versões diferentes daquela história. “Os senhores”, ia dizendo Paz do Amagal, pelos vistos referindo-se a mim e à donzela desaparecida, “os têm um modelo de negócio curioso, que não cheguei a perceber, mas vá lá. A sua sócia procurou o meu consultor; trazia o livro, este, de que o senhor me tinha falado. Fez um excelente trabalho, o Trindade; para além do que lhe dou todos os meses, pelo apoio que faz o favor de me prestar, acabei por lhe estabelecer um reconhecimento, digamos, uma comissão para esta compra, que ele fez finca-pé em não receber, mas que vai acabar por aceitar. É curioso o facto de o negócio, que estava a ser tratado directamente entre o vendedor e o comprador, o senhor e eu, ter sido concretizado por representantes nossos; não é a forma como estou habituado a trabalhar, mas funcionou, e isso é o que interessa. O livro é uma beleza e, ao que se sabe, exemplar único, por um preço justo, num negócio em que todos ganharam. Quanto aos 20 mil que me custou, digamos que paguei o preço justo”. Fez uma pausa e eu preparei-me para o assalto seguinte, que prometia maior violência. “Se foi uma estratégia para aumentar o preço, conseguiu-o, mas de uma forma –já que chegámos a tais pontos, deixe-me ser franco– lastimável. Quase diria, sem ofensa, muito pouco séria.” Dito isto, calou-se; eu estava na última, confesso, e ele deixou-me estar; estava à espera de mais violência, mas não. O conde poisou o livro e acariciou-o de novo, desta vez com a mão aberta, muito lentamente, com os olhos em mim. Um século depois levantou-se, apoiando as mãos nos braços da cadeira; o cão também já estava de pé. Sorria, no momento de encerrar a conversa, para dizer: “Enfim, senhor conde, as coisas são como são! No negócio dos livros, como nos outros, e em tudo na vida, estamos sempre a aprender. Agora vamos embora, que estes senhores têm mais que fazer! “ Foi o cão que me conduziu à saída.

Andei desvairado, uns tempos, capaz de cometer uma loucura na pessoa da donzela da mochila militar. Assim se tivesse deparado a ocasião, que motivação tinha-a de sobra; mas a dama não apareceu. Durante uma semana, ou mais, praticamente não comi e não me recordo de ter tomado banho; cheguei a dormir na rua; depois passou-me e, no regresso a casa, como novo, com o desaire do livro completamente varrido da minha vida.

“Esperava encontrá-lo aqui. Pensei que seria uma questão de tempo; mas demorou”. Não constava que eu conhecesse a senhora que tinha falado, mas o que dizia era verdade: eu ia àquele bar com uma certa frequência, mas tinha feita um intervalo tão longo que o barman me serviu a bebida do costume com uma pedra de gelo em vez de duas, como eu gostava. Ela estava atrás de mim quando falou de novo; a sua boca desprendia um bafo de álcool que seria suficiente para anestesiar um ser vivo dez vezes mais pesado do que eu. Foi então que tive a certeza de que já não queria vingar-me da donzela da mochila militar.

Nos minutos seguintes, só ela é que falou. Sem beber nada. Em resumo: o Trindade tem loja aberta em Lisboa (isso sabia eu, mas não que era ele – ou ainda é – o consultor do Paz do Amagal), onde a donzela o procurou ainda antes de tropeçar em mim, na Feira da Ladra. Falou-lhe no livro, sem lho mostrar, e ele, desde logo lhe disse que estava interessado na compra, mas que a donzela teria de lhe dar uns dois dias, antes de fecharem o negócio. “Provavelmente, para baixar a minha expectativa de preço”, acrescentou a minha companheira de bar, “falou da possibilidade de a mesma obra existir em Mafra, na Biblioteca Nacional ou em Coimbra, na Biblioteca da Universidade, o que, disse-o com todas as letras, baixará muito o preço – digamos, para um pouco menos de metade.” Voltaram a encontrar-se na loja do Trindade na data combinada, “com o trabalho de casa feito.” Quando ele lhe falou no exemplar da obra que existiria na Biblioteca de Mafra, tornou-lhe a senhora: “Este não é o livro de Mafra, meu caro senhor; não tem qualquer marca, como pode verificar.” Para o livreiro-antiquário, foi garantia suficiente. Acertaram então o preço da venda: 8 mil euros, em dinheiro, que ela recebeu na tarde do mesmo dia.

“E aqui estou eu. Há-de perguntar porque é que vim atrás de si. Explico: desde aquele dia, a minha vida tem sido um inferno; a todo o momento – de noite é pior –, penso que a Polícia me vai entrar em casa, para me levar presa por causa do desaparecimento do malfadado livro, de Mafra. Como já percebeu, eu sou uma incompetente nestas coisas. O meu pai, sim; com ele não haveria estas confusões. Ser filho de padre não é garantia de saber dizer missa, não acha?” Fez uma pausa, de descanso, para continuar, depois de suspirar na direcção do meu nariz. “Agora só quero que tudo acabe, preciso de sair deste pesadelo. Naquele dia, pedi-lhe 5 mil euros pelo livro; fique com ele sem gastar nada. Faça como quiser: guarde-o para si, ou entregue-o na Biblioteca de Mafra – mesmo se não for o livro deles, hão-de aceitá-lo. Também eles pensavam que o deles era exemplar único.” Calou-se e saiu, deixando-me um saco de plástico verde com o livro dentro.

“Sermones selectissimi”, o melhor livro saído dos prelos de João Barreira, "liureiro de sua alteza", é agora o mais valioso da minha biblioteca. O meu exemplar não tem qualquer marca ou sinal.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Tributo aos livros, de segunda a sábado




As carrinhas deixavam na paisagem um rasto castanho acinzentado. Mas, o que fazia delas objectos singulares era o recheio e não propriamente as cores, afinal, idênticas às das paredes e móveis das repartições públicas e as fardas dos polícias e dos servidores do Estado. O ponto de partida era a capital do império em fim de vigência, e o destino as zonas rurais. Carregadas de livros, para empréstimo, as carrinhas Citroën de chapa ondulada assentavam arraiais no largo ou praça da aldeia, tendo como pano de fundo um país atrasado, com a imprensa e a produção editorial enquadradas pela censura, uma taxa de analfabetismo próxima dos 50%, praticamente sem bibliotecas públicas e com índices de leitura estatisticamente irrelevantes. Chegaram a ser quase 50 as bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, movimentando mais de 300 mil leitores e emprestando, por ano, uns 3 milhões de livros.

Chegaram a ser consideradas instrumentos perigosos ao serviço da subversão social e política – além de prejudicar a vista, ler só faz mal às cabecinhas menos fiéis à rotina da obediência e toda a gente sabe que é nos livros que os “agentes do mal” põem certas coisas destinadas a minar os fundamentos da religião, da família e do Estado. Alguns funcionários dessas bibliotecas tinham ficha na polícia e as suas actividades eram acompanhadas criteriosamente; chegou a fazer-se chegar “a quem de direito” a conveniência de serem demitidos. É o que dizem os documentos conservados nos arquivos de algumas instituições muito importantes ao tempo, entretanto extintas.

Foi por causa das bibliotecas que R. C. passou muito mal entre os anos de 1958 e 1964. Prenderam-no, mas não exactamente por atentado contra a vida ou o património alheios, nem por andar a ler o “Cavaleiro da Imaculada” (de facto, só fundado em Janeiro de 1960). Ele já estaria referenciado há algum tempo – o Raul aparecia em certos sítios, dizia certas coisas e evidenciava certas preocupações, lia certos livros e certos escritos, além de acompanhar com certos indivíduos, também eles com nome nos registos da polícia. Tinha casado três meses antes.

“Eu andava na Escola Comercial, na altura” – é o Raul em discurso directo – e tinha assim um interesse pelas leituras”. Ele era dos que sentiam que “os jovens precisam de ler, a população precisa de ler”. Ele foi um dos obreiros da biblioteca na Sociedade Filarmónica União Artística Piedense (na Cova da Piedade, Almada), onde juntaram Jorge Amado com Zola, Gorki e outros autores de referência, incluindo calhamaços de filosofia, para operários que sabiam ler – “coisas não muito complicadas”, acrescenta ele; para comprar livros para a biblioteca, puseram a imaginação e a vontade a trabalhar: recolhiam os que lhes davam, organizavam bailes e pediam por boca – no arraial da festa de Nossa Senhora da Piedade, lembra-se ele de uma das quetes mais rendosas alguma vez realizadas naquela freguesia da Outra Banda. E, atrás dos livros, vieram outras coisas: teatro, palestras, cursos de formação – um de corte e costura foi dos de maior sucesso na aldeia-vila predominantemente operária, no fim dos anos de 1950.

Ele tinha aquela ideia dos livros e a convicção do muito que eles podem fazer pela felicidade de cada um. Levar livros aos outros foi um projecto de vida que tratou de pôr em prática também no local de trabalho – mas, aí, não lho consentiram: a direcção do banco (o Montepio Geral) não autorizou que escrevessem a instituições e autores, a pedir livros, “porque o Montepio não tem necessidade de andar a pedir nada a ninguém”. Na terra da sua residência, depois da Sociedade Filarmónica, passou pela biblioteca da Cooperativa Piedense, uma colectividade com maior capacidade financeira e “uns rapazes jeitosos que gostavam da biblioteca, que gostavam de livros” e muitos leitores: “havia muita malta nova que lia, lia, lia”. Sob vigilância (e intervenções, amiúde) da polícia, guardiã de um regime que sentia a cultura como uma ameaça. Apesar disso, no conjunto das bibliotecas populares, Almada e Cova da Piedade contariam, ao tempo, com um acervo a rondar os 10 mil títulos.

Durante os anos da prisão, Raul fez o trajecto concebido pela inteligência da Situação para os “indivíduos da sua laia”, com os tratamentos adequados prescritos para o seu caso e estado, quiçá com o propósito de lhe limarem alguma aresta mais viva ou de lhe corrigirem algum defeito. Acaso na convicção de conseguirem tirar-lhe da cabeça a “mania dos livros”. Sem sucesso, apesar dos dois mil dias passados no Aljube e em Caxias (não estou certo se também em Peniche).

Costumo ver o Raul na biblioteca pública cá da terra, nos sábados de manhã. “Está lá todos os dias”, dizem-me aqui do lado, “passa lá mais tempo do que com a família.” Fala quem não sabe!

“É porque gosto, pronto!”, diz o Raul. “Noutro tempo, o que era preciso a gente esgadanhar para conseguirmos a milésima parte do que aqui há para ler. Porque é que venho cá todos os dias? Não, não é para recuperar o que não pude ler quando me tiveram preso, nem sequer para ter a certeza de que eles não conseguiram tirar-me a “mania dos livros”; tão pouco, para pagar, lendo, àqueles que, à custa de dedicação, inteligência e esforço, nos põem todos estes livros à disposição – que eles merecem tal reconhecimento. Mas, a verdadeira razão é outra, uma coisa muito minha”, acrescentou, calando-se a seguir.

Quando voltou a falar, o Raul exibia a paz de um sábio. “Sabe, meu amigo, em certos momentos, quando se está preso, tem-se um medo muito grande de enlouquecer; também passei por isso. Depois, um dia, não sei por que carga de água, tive a consciência de que isso já não me acontecia e descobri porquê – nas alturas mais difíceis, eu reconstituía, de memória, um livro que tinha lido, como se estivesse a lê-lo de novo. Umas vezes, bastava um livro para ultrapassar uma situação difícil; quando esta era mais demorada, depois do primeiro, usava um segundo livro. Sem eles, os livros, a prisão teria sido muito mais penosa. Por isso é que venho aqui todos os dias – para lhes agradecer.”

domingo, 19 de setembro de 2010

A transfiguração de Lucindo Hermenegildo

Eu tinha as minhas dúvidas, mas era o único. Que eu soubesse, nunca ninguém tinha visto o Hermenegildo em tais preparos, mas estava assente, no grupo, que o homem tinha momentos de transfiguração. Quero dizer, tornava-se outra pessoa, pronto!

Tal habilidade infundia no pessoal um certo respeito, que em alguns era medo a sério. Não é verdade que, uma vez, ele tinha posto o Jeremias a falar com o avô, que tinha morrido há mais de cinco anos? “A voz era a do meu avô”, dizia ele, com os braços em pele de galinha e os pelos todos eriçados; “Falou-me de coisas que nunca contei a mais ninguém e que tenho a certeza que ele levou para a sepultura”, acrescentava o amigo Jeremias, com o queixo a tremer de verdade. Não querendo ofender as convicções e os sentimentos de cada um, eu “moita, carrasco!”; mas ficava no que me parecia. Era melhor assim.

O Hermenegildo era filho, ou enteado, de um indivíduo da Brandoa, que me chegou a vender um carro em segunda mão, pai de uma miúda chamada Ana Júlia Qualquer Coisa, professora de Ciências Naturais, com fama – o pai – de bom mecânico. Os mais chegados tratavam o figurante por Gildo, um diminutivo que convivia mal com modos abrutalhados do rapaz. O ilustre personagem entrara para a nossa Secção, a transpirar muito, uma semana depois da morte do Almeida Sarna. A princípio, não lhe achei grande piada – fazia-me impressão aquele corpanzil imenso, sempre suado, e a sua insistência despudorada para que toda a gente levasse os carros à oficina do pai, ainda por cima longe que nem um burro.

Detestava-o a tal ponto que, quando me contaram as primeiras transfigurações do “artista”, em jeito de vingança (eu tinha, na altura, dezassete anos), desejei vê-lo transformado no dr. Pramodes – a placa de advogado ainda lá está no número 14 da rua do Crucifixo – a entrar um dia na Leitaria Afonsina, pedindo o habitual garoto claro e declarando, alto e bom som, a comer com os olhos o sobrinho do dono da casa: “Por um garoto assim, senhor Afonso, eu era capaz de mandar às urtigas todas as leis deste país!”. Como tentei imaginar a “versão hermenegildiana” de um conhecido pregador de Semana Santa, por terras de Braga, que eu ouvira declarar-se confessor, “ nos seus anos de seminarista, do senhor Presidente do Conselho”, um personagem por quem o nosso colega não escondia uma certa admiração. Depois, amainei.

Todos o tínhamos por homem honrado; muito terra a terra, reunia todas aquelas qualidades que é comum enumerarmos quando morre alguém. Provavelmente por causa da fama dos seus poderes ocultos, uma sugestão sua funcionava, para mim, como uma ordem. Por isso é que aqui estou, convidado para o casamento daquele meu colega, pelo civil, “com a mulher mais bonita do mundo”, com este fato que me custou os olhos da cara, num restaurante dos mais caros da cidade – onde estou há horas –, por sinal numa zona bastante decadente.

Vim relativamente cedo, como me pedira o Dias-Póstumo (as minhas desculpas: não costumo chamar ninguém por uma alcunha, mas, em estado de indignação, ponho frequentemente os princípios de parte). A ideia era irmos conversando, na maior das informalidades, até à chegada da “mais bela”, nascida e criada na avenida central do Poço do Bispo, que eu não conhecia, nem de vista. E assim se foi fazendo, sem nada a assinalar, a conversa fluindo com naturalidade, alimentada por saborosíssimos aperitivos líquidos e sólidos, servidos por uma meia dúzia de empregados, de vestimenta rigorosa e modos a condizer. Passou bastante tempo; da “mais bela”, nem sinal; quanto a convidados – nestas coisas, há sempre convidados, não é? – também nada. Imperturbável, Hermenegildo continuava a secar copos, indiferente ao tempo e provavelmente à minha pessoa. Tendo começado com sumo natural, de laranja, o 2º escriturário da 3ª Secção já tinha passeado o palato pelos brancos durienses, acabando por se fixar – uma meia hora depois do começo dos actos – num malte de 42 graus, simples e sem gelo, em doses duplas, à razão de um por cada 8 minutos. Eu também já ia estando muito “carregado”; tenho ideia de que ainda conseguia distinguir as coisas de forma, digamos, sofrível, mas começava a sentir volatilizarem-se as minhas noções de tempo e de lugar.

Já havia menos luz lá fora, quando me voltei a fixar na conversa. Dias-Póstumo falava, então, de uma sua estada em Espanha. Nele – homem caseiro cujo sedentarismo radical apenas consentia uma saltada à terra, no Verão – uma viagem a Espanha era coisa de admirar. Surpresa maior, em homem de limitados recursos culturais e nenhumas leituras, foi ouvi-lo perguntar-me o que é que eu achava de Alcalá de Henares, começando a dar-me pormenores da terra – as pessoas, os cheiros, o tempo que fazia, as casas, e tudo o mais que pertence. Mas, no seu discurso, eu não conseguia reconhecer a Alcalá onde estivera uns anos antes; prestando mais atenção, senti-me conduzido através de ruas e praças de outro tempo, vendo pessoas e casas desaparecidas pelo menos há duzentos anos, provavelmente no tempo em que lá nasceu Miguel de Cervantes. Uma descrição como a que eu ouvia, não vem nos livros; e se viesse, não a poderia ter lido o Hermenegildo, atentos o seu escasso capital cultural, acresentada pela ausência absoluta de hábitos de leitura.

Eu tinha a certeza de que Dias-Póstumo nunca saíra do país, como sabia ser impossível que ele – sequer em sonho ou transfiguração – tivesse lido o D. Quixote de la Mancha, do Cervantes, ou o que quer que fosse relacionado com a obra ou o autor. Mas, falar assim de uma cidade, só poderia fazê-lo quem lá tivesse vivido três séculos atrás. Nunca, o 2º escriturário da minha Secção.

A densidade do discurso do meu interlocutor começava a confundir-me, confesso, a pontos de me provocar uma espécie de vertigem, coincidente com o lusco-fusco da sala em que estávamos, dando-lhe um toque do que eu imaginava ser o ambiente de uma taberna manchega frequentada pelos contemporâneos de Sancho Pança. Dias-Póstumo atacava o seu undécimo scotch duplo, sem gelo, quando passou a exprimir-se em Espanhol, primeiro em versão “minimal años ochenta” e, logo depois, fluentemente, num vernáculo madrileno de quando governou o senhor D. Filipe I de Portugal. Também mudara de assunto, que passou a ser a obra, em vez da terra natal do autor.

Embalado, deixei-o conduzir-me aos mais saborosos e inverosímeis episódios da vida do cavaleiro da triste figura; o entusiasmo com que falava e a autenticidade do que dizia, acabaram por me transportar ao local dos acontecimentos; imperceptivelmente, passei de ouvinte a interveniente. Eu estava lá, tenho a certeza, assistindo a tudo e participando em vários episódios, como aquele da escolha dos alfarrábios dados como responsáveis pela insanidade do cavaleiro de la Mancha, que eu me vi ajudando a queimar numa grande fogueira, no pátio da estalagem, que eu conhecia, como leitor, do capítulo VI da obra maior de Cervantes.

Num certo momento, ao ver uma mão que se aproximava de uma cintura feminina que por ali andava, a pontos de lhe dar um beliscão, deixei escapar um comentário que soou malicioso. Não sei se o meu interlocutor me ouviu, ou não; vi-o já de pé e, depois, afastar-se da mesa em que estávamos. Pelo espelho da parede em frente, vi-o passar por trás de mim, direito à saída. “Don Miguel!”, ouvi o criado dizer, com uma vénia, enquanto lhe segurava a porta, já a esfregar, entre o polegar e o indicador da mão direita, uma moeda amarela – com toda a certeza um dobrão de ouro de Filipe II de Espanha.

Continuo aqui sentado, com uma bebida à frente; é a quarta desde que espero, sozinho. Já deve ter passado muito tempo. Um emissário do chefe dos criados acaba de me perguntar se pode mandar servir. Do Dias-Póstumo, o emborca whiskies, do Lucindo Hermenegildo, filho do meu mecânico da Brandoa, o mais desprezível escriturário da minha Secção, ninguém aqui saberá nada; nem do transfigurável ex-futuro cara-metade da mais bela do Poço do Bispo, o safado que me pôs, há uma hora, ou pouco mais, a queimar os livros, nem do filho da mãe que se levantou desta mesa há mais de uma hora e meia. Também creio que nada saberão de Quixotes, nem de Sanchos, nem do don Miguel que saiu pela porta espelhada lá do fundo, ou da moeda de ouro do senhor don Felipe que eu vi o criado-porteiro dos salamaleques meter no bolso superior do colete.

Receio ainda que haja uma conta para pagar.

Aqui sentado, não sei o que faça.

domingo, 5 de setembro de 2010

Louvor às bibliotecas de livre acesso


Vai-se a uma biblioteca à procura de alguma coisa em concreto – o livro tal do Coetzee, uma colectânea de contos de Machado de Assis, os Cem anos de Solidão, do Garcia Marquez (ou, do mesmo, O Amor nos Tempos de Cólera, que o Cardoso Pires considerava o seu melhor livro), ou A República dos Corvos, o melhor escrito deste mesmo José (sentença do professor Óscar Lopes, numa entrevista), o último romance do Saramago ou as obras do autor Fulano ou Sicrano; também se pode ir em busca dos livros que tratam do assunto Tal, de um jornal ou de um filme específico. Numa situação destas, sabendo o que nos move, é como no supermercado: vai-se directamente às estantes e, se lá estão as obras que procuramos, é só tirar e usar ali mesmo, no momento, ou pôr no carrinho, registar na saída e ala para ler lá fora, no prazo regulamentar. De borla, sem gastar um avo!

São bibliotecas extraordinárias, as chamadas bibliotecas de livre acesso, em que os livros estão todos à vista do leitor e este os procura directamente nas estantes, para utilizar no local ou fora dele. Gosto dessas, pelas razões óbvias da sensação da liberdade de movimentos, de me relacionar directamente com os livros, sem intermediários. Mais ainda, pela possibilidade de usufruir de um certo tipo de prazer, só ao alcance dos mais ousados frequentadores de bibliotecas.

Venâncio é um desses afortunados.

Quem o quiser encontrar nos sábados, basta passar pela biblioteca municipal; se lhe perguntam o que lá vai fazer, responderá (já mo disse a mim) “nada de especial; só ver”. Certo é que passa lá, todas as semanas, duas ou três horas, a fazer nada, mas sai de lá – sempre – com dois ou três livritos, para consumo privado na semana que vai entrar. “Então, de quem são esses?”, arrisquei da última vez que o vi em tais preparos. “Olha, um consagrado e mais estes dois que eu não conhecia, mas que poderão ser interessantes. Vamos lá ver”, foi a resposta do amigo Venâncio (o “consagrado” era o Tolstoi, dessa vez o Hadji-Murat – Tolstoi é um dos autores que ele anda sempre a reler – e os “desconhecidos” pareceu-me serem o Enrique Vila-Matas – soube, depois, que ficou cliente – e um livrito de Severiano Viramillo, “deste não sei rigorosamente nada”, disse como a desculpar-se. “Nem eu!”, respondi-lhe. E era verdade.

Foi o exemplo dele, Venâncio, que me levou à prática da errância nas bibliotecas. Em traços muito gerais, é assim: pode-se entrar por ali adentro, sem ir à procura de nada, em concreto, como quem vai só para fazer alguma coisa enquanto se espera pela chegada de alguém, só para passar tempo; escolhendo uma secção de estantes (ao acaso, ou conforme a inspiração do momento – as estantes têm, normalmente, uma indicação do tema de que tratam os livros aí colocados: Filosofia, Política, Literatura, Biografias, por exemplo; depois, percorra-se as estantes, uma por uma, sem uma ordem obrigatória, perfeitamente ao acaso, inclinando a cabeça ora ao lado esquerdo, ora ao lado direito, para ir lendo os títulos das obras, tirando esta, para lhe espreitar a contracapa e depois o índice, porventura lendo uma ou outra página, ao acaso, ali de pé, suportando o peso do corpo ora num pé, ora no outro; depois, arrumar o livro no mesmo sítio e continuar a andar, percorrendo as prateleiras de cada estante, se for caso saltando uma ou outra, para deixar pé para a próxima visita.

É mais ou menos como fazemos ao visitar uma cidade: toma-se um ponto de referência – a rue de Rome, o Rijksmuseum, a Grand Central Station ou o Jardim de São Pedro de Alcântara, conforme o caso – e parte-se à descoberta. Sem um plano, sem horas marcadas, ao acaso, sem um destino definido, sendo que o importante não é chegar, mas a viagem em si mesma.

Foi por este processo que o William Saroyan, o Manuel de Lima ou o Paul Bowles passaram para o meu património, ou que decidi passar ao lado de obras e autores “obrigatórios”, sem os pôr num index, fiel à sabedoria do “nunca digas nunca”; foi também assim que um certo “intelectual” – detestável – cá da terra se me revelou um poeta muito a meu gosto, ou que passei a apreciar a obra de um tal autor de ficção publicamente identificado com gente que tenho o prazer de desconhecer.

Nas condições do exercício de tal mester, é igualmente possível que o mesmo livro venha mais do que uma vez cá a casa. De propósito, umas vezes, mas quase sempre por acaso. Foi assim que Luís Amorim de Sousa voltou cá a casa. Depois da mas recente incursão pela biblioteca do Município, logo nas primeiras páginas da leitura da Crónica dos Dias Tesos, tive a sensação de déjà lu; à medida que fui lendo, fiquei com a certeza. Apesar de ser uma reprise, foram mais duas horas de prazer da leitura que acrescentei ao meu inventário; sem ser um absolut, a dita Crónica tem dignidade que baste, a escrita é escorreita e o ritmo interessante, ao ponto de me deixar vontade de reincidir na prosa do homem (servida pela Assírio&Alvim), logo que a oportunidade se depare.

Louvor, pois, ao livre acesso nas bibliotecas, e uma homenagem ao Venâncio, que por estas artes exercita os seus dotes de caçador.



Venâncio – Do Latim, caçador.




domingo, 16 de maio de 2010

Lançamento - 29 de Maio
16:00 horas
Convento dos Capuchos - Almada
Com a presença do senhor Bispo de Setúbal,
D. Gilberto dos Reis, autor do prefácio.
Edição da Câmara Municipal de Almada.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Prenda de anos


“Vais ter a melhor prenda que alguma vez te dei. Sim, nos anos”.
Largou esta sentença e saiu. Verdade, verdadinha, as coisas entre nós não iam pelo melhor, com aquela parvoeira da Ana sobre as namoradas anteriores. Não liguei à conversa da prenda, como não ligo grande coisa aos aniversários.
Uns dias depois, voltou ao assunto: “Aquele alfarrabista teu amigo é na Rua do Passadiço, não é?” A coisa começava a ser mais interessante, pensei, ao responder-lhe que sim, lembrando-me que devia dar um telefonema ao velho Martinho. “Há um tempão que não o vejo”, acrescentei, sem a certeza de ela me ter ouvido.
Uns dias depois, no escritório, tinha um recado à minha espera. Num cartão de visita, manuscrito: “Tenho lá um molho de cartas, mesmo ao teu gosto. Tenho uma oferta, mas já sabes – tu primeiro. Aparece”. Por baixo, um “M.” mais rococó do que era costume no Martinho. Peguei no telefone e liguei-lhe. “A cliente está mesmo decidida”, atirou ele, em começo de conversa, “sem esforço nenhum, vendia-lhe as cartas por uma quinhentola. Para ti, são trezentos, e tu estás primeiro, meu querido, como sempre! A louraça volta cá à tarde com o dinheiro na mão. Sabes que até parece a tua letra, pá?” Senti um sobressalto. Ainda lhe disse que não podia ser, só para ser minha a última palavra, como se ele, ou eu, ligássemos a essas coisas. Resolvi passar pelo Martinho antes do almoço.
Pelo caminho telefonei à Ana, com um convite sincero, para um chá, “aí pelas cinco”. Falou-me de um compromisso à tarde e que não tinha a certeza de estar despachada a essa hora. Fiquei com a certeza de quem era a “louraça do Martinho”.
Antes das três liguei para a Alfarrábios e Simpatia. “Estou com uma cliente; devolvo-te a chamada dentro de meia hora”, foram as instruções do livreiro-antiquário. Liguei-lhe às quatro. “Diz lá, meu. As cartas? Já as despachei. Como não estavas interessado. Não me digas que…” Conversa de m., a do Martinho. Grande traidor! Nem lhe disse que me dispunha a pagar os tais 300 ou os 500 ou o que me pedissem, não para as ter, mas para que não fosse parar a mãos erradas o maço das cartas que, num namoro de seis meses, eu tinha escrito à Rosalina, a miúda mais leal que alguma vez tive.
Uma imperceptível alteração de tensão convenceu-me de que eu ficara preocupado. As peças do puzzle encaixavam todas e isso não era uma boa notícia. Tempos difíceis, era o que era – o dia do próximo aniversário prometia e eu já começava a antever a cena do rompimento, a apresentação aos pais de uma nova namorada e a sugestão de reprimenda da mãe, que apesar da experiência acumulada, nunca mais ganhava calo: “Quando é que tu assentas, filho? Com esta, já são quantas? E tal, etecétera…”
No dia 15, fui-me deixando ficar na cama, numa expectativa cobarde de que a crise passasse ao lado. De mansinho, a Ana deu início aos rituais de aniversário: o “Parabéns a você”, o beijo da ordem – surpresa! um beijo a sério, daqueles tais – a prenda embrulhada. “Espero que gostes”. E, depois de uma pausa: “Não era bem isto que eu queria, mas aquele teu amigo deu descaminho a umas cartas manuscritas que eu lhe pedi para reservar.” Desembrulhei a prenda e disse-lhe que tinha gostado muito de “O fiel secretário do amor, ou nova collecção de cartas amorosas, tanto em prosa como em verso…”, edição de 1853, da Typographia Simão Ferreira, do Porto. Obrigou-me a jurar que era verdade que a prenda me tinha agradado; e eu jurei.
No escritório, à tarde, entregaram-me um embrulho. Dentro, o espólio completo da minha correspondência amorosa para a leal Rosalina. Ninguém me soube dizer quem tinha feito a entrega. O Martinho ainda hoje jura que não foi ele.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Livros de levar e trazer

Da Outra Banda, chegam a Lisboa “cacilheiros” e “catamarãs” carregados de livros. Vista do rio e da margem de lá, Lisboa é um deslumbramento de arrumação, moldando-se ao relevo que desce até ao cais da margem norte, envolta numa luminosidade que não deixa adivinhar-lhe o trânsito, as obras viárias, os sítios obrigatórios para os turistas, os idosos pobres que vivem mal, as casas degradadas, a segurança e o conforto das casas boas e dos condomínios fechados, ou aqueles tantos que dormem na rua – que diabo, digo eu, a esta hora já se devem ter levantado!

Em surdina, diz-se que tudo está muito mudado. No transporte também. Olhem para dentro do cacilheiro: até onde a vista alcança, toda a gente com um livro na mão, toda a gente a ler! Aqui o vizinho do banco da frente, caixeiro reformado, meu conhecido de vista há uns 30 anos, “enrolado” num clássico policial; na mesma fila, duas senhoras, uma menina, dois moços e três cavalheiros, “navegando” – se a vista não engana e por ordem – um Steinbeck, um Harold Robbins, um Cardoso Pires, a história de um estadista meio conservador, um Saramago, um Reverte, outro Saramago e um tal de que não se consegue ver o título. Nas filas mais atrás, é o mesmo, e igual em todo o barco, predominando as edições de bolso, as narrativas mais curtas, as colectâneas de contos, mas comparecendo igualmente a poesia, o policial, a ficção científica e a banda desenhada. Assim se navega, aqui onde começa o Mar da Palha, nesta carreira e nas outras, entre Cacilhas e o Cais do Sodré, e nos barcos do Barreiro e do Seixal.

É uma experiência recente, esta biblioteca de levar e trazer. Em terra de grandes arrojos de imaginação e de eficácia concretizadora, o mais complicado foi escolher o nome entre os 7.543 propostos. Ficou “Biblioteca de Viagem” (um nome que, segundo consta, não estava na lista, que, no entanto, ditou o número de livros em circularção - exactamente 7.543 livros.

Por trás deste sucesso, está um princípio muito simples: os cais de embarque, na margem sul, foram transformados em biblioteca, passagem obrigatória para se entrar no barco. Enquanto se espera, pode-se folhear um livro e, depois, levá-lo para consumir no caminho – para lá e, no fim do dia, para cá. Dois números deste sucesso: primeiro, o sistema electrónico de controlo e vigilância, em que foram activadas novas funcionalidades, detectou 3,2% de passageiros sem livro no primeiro dia; segundo, todos os livros levantados de manhã regressaram à base antes da meia-noite do próprio dia.

Não falta quem assegure que vão replicar a “Biblioteca de Viagem” nas redes de comboio e de autocarro da periferia norte de Lisboa.

Em Quinta-Feira da Paixão não se fala noutra coisa.

Com uma pontita de inveja, é verdade, decerto por não ter sido eu o pai da ideia, vou andar por aí, nos dias mais próximos, a dar fé. Não se dê o caso de tudo ser uma brincadeira deste 1º de Abril de 2010.

domingo, 28 de março de 2010

Zenão Lopes, sobre bibliotecas

Chegou aí um escrito do Lopes. Sem endereço e sem data. Cá vai, com licença de Vossas Senhorias.

(...) aqui vão umas variações telegráficas sobre bibliotecas e prisões bem mais interessantes do que essa essa história, que se conta, de eu ter estado preso, quando taparam o buraco da porta do Arquivo.
1. Prisão que se preze, tem a sua biblioteca. Na prisão de ..., cá na terra, o advogado João Vale e Azevedo fez trabalho voluntário na biblioteca. Fez bem. O facto de o também ilustre senhor Alphonse Capone ter feito idêntico voluntariado, umas décadas antes, em Alcatraz, ali à vista de São Francisco, não tira um cabelo de mérito ao nosso advogado.
2. O doutor Michel Garel era um respeitável especialista em manuscritos antigos, de créditos reconhecidos internacionalmente nos manuscritos hebraicos. Foi preso por causa de um - o H52 - do século 13, raro, de valor inestimável, desaparecido da Bibliothèque Nationale de France na entrada do século 21. No mercado da especialidade, o dito H52 chegou a cotar em 300 mil dólares, preço por que chegou a ser vendido, apesar de amputado em muitas páginas, ao que consta para esconder a sua distinta origem. Não consta que monsieur Garel tenha exercido de bibliotecário na prisão.
3. No melhor estilo gareliano, em versão portuguesa, o doutor Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, funcionário superior da Biblioteca Nacional. Nos idos de 1948-49, o distinto personagem subtraiu da B.N. umas dezenas de obras, que chegaram a ser avaliadas em mais de 3o mil contos, um caso com um mediatismo incomum para a época. Vendidas em Lisboa, algumas das obras eclipsaram-se, de vez; outras voltaram à Biblioteca, umas tantas tornadas irreconhecíveis pelos tratos de mutilação sobre elas exercidos (num leilão, nos primeiros anos deste século, foi recuperada mais uma). Não chegou a ser condenado o doutor; nem se notabilizou como bibliotecário, na prisão, onde se apagou feito uma lástima de gente. Nos seus tempos de insuspeito, o doutor notabilizara-se por via da publicação de um estudo pioneiro sobre a "Arte de Furtar".
4. O senhor Junot, general de Napoleão, mas não maréchal de France, que ganhou fama de ladrão (não apenas) por se ter apropriado da nossa "Bíblia dos Jerónimos", não foi preso por isso. E a dita preciosidade só regressou à terra depois de o rei de França a ter resgatado por mais de 100 mil francos, pagos à viúva e herdeira do general de muitas estrelas, possuidor de uma biblioteca privada onde figuravam obras portuguesas de estalo, em especial mapas manuscritos, não se sabe se também levados de cá.
5. Num outro registo: Bonifácio A., se não me engano no nome, operário metalúrgico, foi preso como muitos outros "sindicados", na Primeira República Portuguesa, "por razões sociais" (que era o mesmo que dizer, em razão da sua militância sindical). Tendo arranjado uma ocupação paga, na prisão, mandava todas as semanas uma parte da respectiva remuneração, para ser aplicada no desenvolvimento da biblioteca do Sindicato da Metalurgia de Lisboa.
6. No rescaldo da não eleição de Humberto Delgado como presidente da República, em 1958, prenderam R. Cordeiro. O crime por que o mantiveram preso mais de 4 anos foi ter andado a formar bibliotecas nas colectividades da Cova da Piedade. Em Caxias e Peniche, que também frequentou, não havia biblioteca de que tomar conta.

Com esta, ala que se faz tarde. É bem possível que, um destes dias, volte a tão distintos registos.

Modestamente, vosso, do c.
Zenão

sábado, 20 de março de 2010

A criatividade d' O Suspiro atirada às urtigas

O concurso apelava à criatividade dos sócios, a quem se pedia que propusessem um título para o boletim do Grupo Desportivo e Cultural da Companhia de Seguros Tal; a lista dos títulos propostos seria votada pelos sócios, num processo democrático muito ao arrepio das regras vigentes ao tempo, no ano de 1972.

“Para ele concorrer, de certeza que foi para ganhar algum tostão", diria a mãe. O que tinha o seu fundo de verdade – para ganhar 5 tostões, o infante era capaz de tudo: de ir buscar um cântaro de água, na hora do calor, ou de ir escrever uma carta à avó sem fazer beiça, de ir comprar meio litro de petróleo à mercearia, dizendo, no fim, sem vergonha, “é para pôr na conta”. Seria até capaz de acreditar, pelos cinquenta centavos, na possibilidade de ganhar uma corrida à Rosalina Papoila, uma campeã local de corridas - lembram-se? Mas, talvez não; talvez não houvesse nenhum prémio em dinheiro e o infante fosse apenas empurrado pelo gosto da escrita.

No fecho da votação, os dirigentes do Grupo Desportivo tinham nas mãos um "terrível" problema: entre os 7 ou 8 títulos que tinham ido a votos, com nomes tão dignos para título de publicação – O Leme, “um título bastante forte”, O Segurário “bastante sugestivo” ou até “um título simples como Boletim de Desporto e Cultura” – a vontade soberana do pessoal tinha-se inclinado para O Suspiro do Mexilhão. As ânsias do promotor da iniciativa eram notórias e a modos que justificadas, pois quem seria capaz de pedir à Administração o subsídio para a edição mensal de um “pasquim” com tal nome?
A proposta era que o infante retirasse o título. Tanto mais que – o interlocutor foi muito claro nisso – um tal nome até “podia trazer problemas à Companhia, ao Grupo Desportivo e (quem sabe?) até ao autor do título. O Leme, por exemplo, é um bom título, e poderás lá escrever quando quiseres. E a gente dá-te o prémio, na mesma”, concluiu o Fernando M., deixando muito subentendido o nome do Ferrer, um colega publicamente referenciado como informador da "pide".
Encheu-se de brios, o rapaz. "Porque sim: o pessoal tinha escolhido o Suspiro do Mexilhão, provavelmente por brincadeira; ou para chatear - que na altura até dava gozo. Seguindo a sugestão do M., eu estava a defraudar os “mexilhões” que tinham votado no dito cujo; isso irritava-me, mas eu podia bem com isso. Agora, o título era bom e eles atreviam-se a mandá-lo às urtigas. Com licença, e vai de lhes chapar um 'Não' redondo na cara. E assim fiz, matando provavelmente à nascença um escritor-esperança, em minha opinião um rapaz com muito potencial. Olha, continuei nas cartas comerciais. O prémio? Era em dinheiro, e bom. Mas que me interessava isso? Olha os 25 tostões que me deram de prémio, numa corrida que ganhei a uma campeã absoluta. Eu que era perdido por ganhar uma "coroa" que fosse, aqueles vinte e cinco tostões não me souberam a nada. Porque eu de facto ganhei à Rosalina, em corrida, mas acho que foi por ela ter escorregado - e assim não dá gozo".

sábado, 13 de março de 2010

O buraco de Zenão Lopes


Era o guarda-mor dos Arquivos da Universidade, o mesmo cargo que nos Arquivos Nacionais tivera, séculos antes, um aparentado seu, de nome Fernão Lopes (lembram-se?). Foi na cidade de C., já há uns anitos.

Pêlo preto, bigodes impressionantes e orelhas espetadas, Zenão era um seguro de vida para aquela documentação toda. Coisas do tempo dos afonsinos e seus descendentes, de valor, cobiçadas por todo o tipo de bicharada (peixes de prata, mil-patas roedores de papel, ratos e ratazanas, e, por outras razões, insuspeitos e distintos investigadores da nossa praça). Andou por lá muitos anos, mas, pelos vistos, não os suficientes para o fazerem doutor; mas aprendeu que se fartou - a importância de certos papéis, a paciência de quem anda ao papel velho, os mil esquemas dos bichos para iludir um guardião, a arte do faz-de-conta-que-não-se-passa-nada, e até as vinte e duas maneiras de integrar no património pessoal um manuscrito que é propriedade pública.

Consta que se empanturrou mais de bichos que de literatura e história, mas é verdade que estava ali uma verdadeira alma de arquivista. Até um dia - nunca mais lhe puseram a vista em cima.

Sobre as razões do sumiço do guardião, disse-se muita coisa, sobretudo parvoíces - que ele se aburguesara, deixando-se adoptar por uma bruxa da região (que todas as bruxas, como se sabe, têm o seu gato preto) ou que tinha entrado para uma casa, onde o adoravam pela sorte, em dinheiro e não só, que tinha trazido à família (gato preto em casa é sorte garantida, dizem), ou que mudara de cidade para se dedicar aos estudos de genealogia. Falou-se também na história do buraco - "num país decente, desabafava um antigo chefe-arquivista, "se viesse a saber-se como a bicharada do papel, cá no Arquivo, se tem banqueteado desde então, seria o fim da carreira burocrático-administrativa de um 'Senhor Fulano de Tal', um malandreco a caminho de ser ministro".

A porta do arquivo tinha um buraco, em baixo, como a porta da casa da minha avó Maria do Rosário e quase todas as de lá da terra. Era a porta por onde entrava e saía o gato-arquivista, a sua "janela" de comunicação com o mundo. Mandar tapar o buraco, do lado de fora, foi, porventura, a primeira grande obra do futuro ministro, recém-nomeado director do Arquivo da Universidade. Esteve mais de oito dias sem poder sair, o nosso Zenão.

Foi depois disso que nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima; mas, para mim, o que o levou àquilo, não foi o buraco. Foram os ratos.

Já tinha começado um tempo antes, a invasão dos ratos. Primeiro, quando começou a ver aquilo, um ratito agora e outro mais logo, Zenão Lopes limitou-se a ficar indiferente, como se não fosse nada; depois, vieram muitos, muitos mais. De tal forma que até os mais empedernidos e gastos investigadores da "casa" traziam o seu - uma verdadeira praga.

E ele começou a sentir que os tempos já eram outros. Mais por amor próprio, que por instinto de sobrevivência, resolveu zarpar dali - não fosse o futuro ministro mandá-lo substituir por um gato electrónico. "Safa!"

domingo, 7 de março de 2010

A missa breve que não foi

Tal como acontece com as sopas, há missas e missas. Falemos das breves (em latim, missa brevis), que suprimem algumas partes menos (digamos assim) interessantes, restringindo-se por exemplo ao Kyrie, ao Credo, ao Sanctus e ao Agnus Dei.

Algumas obras primas desta espécie dão fama a uns tantos personagens – João Sebastião Bach, W.A. Mozart, Benjamin Britten ou Vytautas Miškinis, um rapaz do meu ano –, uma lista apesar de tudo bastante restrita, onde poderia constar pelo menos mais um nome, o do padre Tomaz da Conceição Ramalho. Se a sua excelentíssima afilhada tivesse sabido ficar calada.

Foi no Verão de 68. Salazar já tinha caído da cadeira, mas o país ainda não sabia. As férias grandes corriam mansas e plenas de tédio; como quase todos os da sua idade, o infante arrastava um enorme cansaço de não fazer nada, as semanas passando sem história, nem memória. De obrigações, apenas a de ir à missa todos os dias, um sacrifício imposto pela comunidade aldeã ao futuro padre que não haveria de ser.

Na igreja da terra, o ritual da missa de semana, igual à de domingo, apenas sem a homilia secante. A assistência também era diferente, umas oito a dez mulheres, se tanto. Oficiante, o padre Tomaz, acusando o desgaste dos seus mais de oitenta anos, tendo a ajudá-lo nos actos um rapazinho pouco seguro de vir a fazer carreira trajado de batina e outra paramentaria sacra. Como sempre, naquela manhã, o padre Tomaz cumpria a função com a exactidão de funcionário. Com mais de sessenta anos de ofício, dizia a missa em português com a mesma desenvoltura com que o fizera, tantos anos, em latim.

Tudo normal, sem nada a assinalar. Até àquele momento.

Cumprido o Confiteor (“Confesso a Deus todo-poderoso e a vós irmãos, que pequei …”, vocês lembram-se), o padre Tomaz lançou, resoluto, o Pai Nosso, saltando por cima do Gloria e das entediantes leituras da Epístola e do Evangelho. O infante sentiu um ligeiro sobressalto, mas deixou andar, como se tudo aquilo fosse normal – que, em verdade, em verdade vos digo, aquele pequeno salto do oficiante abreviava a função em 60% do tempo, um quarto-de-hora bem contado. E todos sabemos quão importantes são quinze minutos na vida de um adolescente.

Hesitante no princípio, a assembleia seguiu o padre Tomaz no Pai Nosso. Como se quisesse levá-lo à glória do clube restrito das missas breves. Onde agora estaria, de pleno direito, em tão boa companhia, ad aeternum.

Mas, não foi assim – dali da frente, sem sair do lugar, alto e bom som, a menina Maria de Jesus ordenou: “Oh, padrinho, agora não é o Pai Nosso, é o Gloria”. Todas as mulheres se calaram e o padre também. Segura de si – não se sabendo se convicta ou não do mal que acabava de fazer ao padrinho-padre – a Menina Maria de Jesus do senhor vigário (que era assim que a ela se referia toda a gente da terra) lançou, ela própria, o “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa-vontade…", seguida alegremente pelo coro das mulheres e depois pelo próprio padre.

Foi desta forma inglória que Tomaz ficou às portas da imortalidade. Ou porque “Deus escreve direito por linhas tortas” ou por outra razão que me escapa, nunca mais teve outra oportunidade.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Não consta que J. Cristo tivesse biblioteca

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

E não é assim?

O poema chama-se "Liberdade" e foi escrito em 1935 pelo senhor Fernando, pessoa de muitos nomes e vasta obra.
Num espaço como este, não me arrependeria de referir aquele seu "Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes" que não hesitaria em assinar ao lado de Caeiro. Ou daquele Menino Jesus, d'O Guardador de Rebanhos, que me fez gostar ainda mais da minha namorada, que mo deu a ler há uns tempos, bem-haja ela!
Passaram agora 75 anos da edição da sua Mensagem, que a editora Guimarães assinalou com a edição de um facsimile da versão dactilografada que serviu de base à 1ª edição, da extinta casa editora Parceria A. M. Pereira.
O livrinho, na edição de 1934, vi-o eu à venda, numa livraria alfarrabista do Largo do Carmo, em Lisboa, já lá vão muitos anos, por 450 contos, na moeda de então (uns bons 2.300 euros de agora).
Por que preço andará agora essa primeira edição, não sei. Se a virem em bom estado, a bom preço, comprem, pois é um valor seguro. Se não for pelo conteúdo (há apreciadores e não apreciadores, tão respeitáveis uns como os outros), seja para vender mais tarde – valorizada.
Entretanto, fico-me com O Banqueiro Anarquista, a fazer boca para se falar aqui, um dia destes, da "febre de criar bibliotecas" no tempo exacto em que o senhor Fernando andou a escrever aquelas coisas.

Está lá tudo, numa biblioteca

Uma biblioteca é um livro aberto – diz tudo sobre o seu possuidor: bibliófilo ou bibliómano, as preferências do dito, a sua relação com os livros, como evoluiu o seu gosto ou mesmo o seu poder de compra.

Cada biblioteca é uma entidade específica, única. Têm em comum os livros e o gosto de alguém que resolveu coleccioná-los; mas quão diferente a biblioteca pessoal de Calouste Gulbenkian da de Alfredo Canana ou a de Ezequiel Ferreira; mais próxima das bibliotecas de Salema Garção ou a do comandante Ernesto Vilhena, todavia tão diferente.

Rui Santos Gomes não era um eminente vulto académico, nem um empresário. Nem tinha dinheiro que se visse. Mas gostava de livros e dedicou-se, toda a vida, a fazer uma biblioteca, a sua. Viu muitos livros, comprou bom e mau, vendeu muito do bom em alturas de maior aperto de finanças. Comprou por cá, especialmente em Lisboa; emigrado, continuou a comprar, encomendando directamente a livreiros-antiquários, em especial a João Rodrigues Pires, d’O Mundo do Livro, e outros que tal. Muitos dos seus livros, andou com eles às costas de Portugal para o Canadá e de lá para cá, no regresso de um período de anos de emigração.

Já velho, preocupou-se com o destino futuro da sua biblioteca – queria-lhe como a um filho ou filha, que não tivera. Passou por umas tantas bibliotecas públicas, à procura de uma a que pudesse fazer uma doação, na condição de tratarem bem os livros e de não os dispersarem. Nenhuma lhe mereceu confiança. Acabou por os deixar, na sua morte, a um amigo recente, a quem pediu que lhe tomasse conta dos seus livros, que eram como filhos.

Mantém-se íntegra a biblioteca de R.S.Gomes. Teve melhor sorte que as do Engenheiro Salema Garção (que há 60 anos recebeu uns quantos livros roubados da Biblioteca Nacional de Lisboa, vendida em leilão em 2004) ou a do Comandante Vilhena, vendida em leilão nos anos de 1990. Uma nota sobre as razões dos herdeiros de alguns grandes bibliófilos, que decidem vender "a tralha" deixada pelos "velhos": “A Infanta Capelista”, de Camilo Castelo Branco, um livrinho que fez parte da Biblioteca Vilhena (um dos 3 ou 4 únicos exemplares que existem da 1ª edição, que foi retirada do mercado logo que foi publicada, a pedido do rei D. Pedro V) foi vendido, num leilão em Fevereiro de 2009, por 6.500 euros.

Do baú do infante - O banho do Carolino

“Escreve aí aquela do Carolino”, disse-lhe o pai, numa segunda-feira de festa. Naquele tom, para o infante era uma ordem. Aqui fica, pois.
Costumava vê-lo na missa dos domingos, com o mesmo ar que tinha na fotografia do casamento dos pais. Homem de honra e palavra, nisso e no resto igual aos da idade dele, o Zé dizia que só tomara banho completo na véspera de ir às sortes, já lá iam mais de vinte anos. “O mais, se tiverem dúvidas, perguntem aí à Clara”. Porquê, para ir às sortes, não havendo notícia de nenhum preceito do RDM estipular a obrigatoriedade da barrela pré-inspectiva. Também não se sabia de ter morrido ninguém só por rejeitar a água e o sabão, ainda que Carolino tivesse como certo que o Cardoso morrera disso: “ É o és – à mulher disseram que a autópsia dera o resultado de ter ele morrido de indigestão ou de congestão, de uma coisa ou da outra, mas para mim, nem tinha sido preciso o doutor desmanchá-lo, que o homem morreu por causa do banho”.
Carolino banhou-se exactamente no mesmo sítio de onde tiraram depois o Cardoso.
“Tínhamos andado todos na borracheira a tarde toda, logo a seguir à missa, porque era um domingo; na segunda-feira é que íamos às sortes. De taberna em taberna, estivemos em todas, até que se fez de noite. Na taberna da Viúva é que estávamos a fazer a sossega; passando já da meia noite, eu saí para ir mijar. Cá fora não se via nada; quando eu agarrei no animal, devo ter tropeçado numa pedra e caí numa poça de lama que estava ali no meio da rua, para onde dois ou três estavam a mijar naquela altura. “Oh, oh!, o que foi aquilo?”, disse um deles, mas ninguém lhe respondeu. E eu muito calado, à espera que eles fossem embora, a sentir a água e a lama a passarem-me do fato para o canastro. “Estás fodido, Zé”, pensei ei, “que não tens outra fatiota para amanhã!”.
Quando os outros foram para dentro, pus-me de pé – com dificuldade, é claro, não por estar bêbedo, mas por causa do peso da lama que tinha agarrada a mim. E fui-me dali para fora”. Pelo caminho, a lama começou a secar; Carolino parou junto da azenha para vomitar; depois, esteve a dormir no palheiro do Joaquim Lopo, “num resto de caneirões de milho que ele lá tinha. Quando acordei, vocês imaginam, o fato era como uma sola que eu tivesse vestido, dura e inteiriça, eu mal me podia mexer dentro dela”, a cabeça a rebentar e os interiores num rebuliço; cheirava a mijo e a azedum, mas, apurando o nariz, Carolino teve a certeza de ter merda da verdadeira agarrada às botas.
Sentia-se enojado e com uma necessidade enorme de voltar a dormir; mas era preciso agir – dali a algumas horas (não sabia quantas) tinha de se apresentar na praça para ir com os outros à inspecção militar. Primeiro tirou as botas e a seguir despiu-se; a ribeira levava bastante água e, junto das pedras onde as mulheres costumavam lavar a roupa, teve a sorte de encontrar um resto de sabão, com que lavou a roupa e o corpo todo; de regresso ao palheiro, fez uma fogueira e nela secou o necessário, enquanto se ocupava das botas. Quando o relógio da torre deu as matinas, estava ele a enfiar as ceroulas, já enxutas como a outra roupa interior; mais atrasados estavam o casaco e as calças, que lhe haveriam de conservar o corpo húmido até à noite. “No dia a seguir ao das sortes, no outro e no outro, não saiu da cama, tolhido de todo por umas dores no corpo, nas pernas e nos braços. Tudo por causa do banho”.
Pior banho foi o do Cardoso, como já se sabe. Encontraram-no – o Chico Remeloso, o Albertino e o Zé Escada – muito desassemelhado, com o corpo todo roxo, inchado, metido num vasculho, que para lá o levara a corrente da ribeira, por sinal bem fraca naquele sítio já tão afastado do açude. “Não fosse ele tão bom homem, ainda agora aí havia de andar, mesmo tendo mulher tão ruim. Foi o caso, dizem, de ela deixar de cumprir a obrigação que toda a mulher tem com o seu homem, que para isso a gente se casa com elas, não é? Punha-lhe ela em cara, uma vez e outra, que ele cheirava muito mal, das partes e do resto, e que ele se haveria de lavar muito bem se a quisesse ter outra vez. Deu-se ele a cismar naquilo, cada vez mais, e, naquela noite depois da janta, sem poder aguentar mais o animal, se meteu à ribeira, a banhar-se, e lá ficou”.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Livros com livros dentro, no regresso às missas

De sua graça, Leonardo Padura, nascido em Cuba - jornalista e autor de livros. Para biografia basta. Do homem, que não conhecia em edição nacional, tinha ouvido falar da sua prática de "problematização da realidade cubana".

Quanto ao livro, "A neblina do passado", encontrei-o aí, numa livraria que não sei identificar; é este que aqui me traz, no regresso a esta espécie de desobriga que me traz, de tempos a tempos, perante Vossas Senhorias.

O homem é de Havana, cidade onde decorrem os actos, centrados em Mario Conde, um ex-polícia, num enredo de conto policial, com mortos e feridos, cantoras de boleros e bailarinas com nomes de Flor de Lotus, Violeta del Río, já desaparecidas ou simplesmente retiradas dos cabarés do tempo de Fulgencio Batista, um 45 r.p.m. e - podia lá deixar de ser - um enigma.

E livros! Uma biblioteca de outro tempo, do outro mundo, a abarrotar de coisas boas - raridades que ele põe a desfilar à nossa frente, à medida que os vai tirando de uma biblioteca privada, inviolada há muitas dezenas de anos, em venda, propriedade de um casal de irmãos com segredos escondidos e estômagos um tanto maltratados pela crise. O êxtase que o homem, o ex-polícia, experimenta ao mexer naquelas raridades bibliográficas passa para o lado de cá, para o leitor, provocando aquela sensação boa de estar lá a ver tudo e a sentir o que ele sente. Abençoado Padura, que, pelo caminho, também nos dá a ver aquele Chevrolet de 1956, modelo Bel Air, conduzido por Yoyi, o Pombo, também conhecido lá na terra por Paco Chevrolet; e Havana, na sua nostalgia, nas suas glórias e misérias.

Dois títulos, para exemplo, dos responsáveis pelo êxtase: uma edição original do "Cândido", de Voltaire, ou uma primeira da "Historia mundial da infâmia", de Borges. Ou, mais ainda, "O livro dos peixes" e "Los ingenios", ditos "os dois livros mais valiosos que se imprimiram em Cuba", para valerem, por baixo, ao tempo, no mercado local, umas dezenas de milhares de dólares.

Por mim, estou a 9 páginas do fim do livro. Vou ficar por aqui, até ver, com a leitura suspensa, para prolongar o prazer da coisa.