domingo, 10 de maio de 2009

Ler em pé (como introdução à sopa de batata)

O leitor praticante é um dependente e sabe-se quanta gente de bem caiu no vício, aparentemente sem lhe poder fugir, como outros dependem do álcool, do tabaco, da depressão. Para estes, a humana sabedoria inventou tratamentos e programas de cura, tratando-os como doentes; àquele, o dos livros, não se chegou a tanto e deixam-no andar por aí, se é que dão por ele!
É sabido que, ler demais, faz mal aos olhos; em miúdo e adolescente, apontavam-me os que lidavam com letras e números – todos usavam óculos, sinal de mau uso do primeiro dos sentidos. Havia então – não sei se ainda há – um espécime característico, referenciado com certo desdém, com mistura de comiseração e de vade retro: o que está sempre a ler, mesmo nas circunstâncias mais despropositadas e nos momentos menos próprios. Livrasse Deus um homem de ter um filho assim!
Um vulgar leitor que não tenha, sequer, atingido, o grau 3 da dependência, pratica o acto no maior descuido: quantas páginas se lêem, na rua, de noite, debaixo de um poste de iluminação pública ou aproveitando a luz de uma montra iluminada, enquanto se espera por alguém.

Noutro tempo, um certo conhecido meu, pai de filhas, lia romances inteiros numa livraria de Lisboa onde ia na hora do almoço, à razão de dez páginas por dia, como sobremesa comida em pé. De tempos a tempos, mudava de fornecedor. Havia casas em que o ignoravam e, noutras, fingiam não dar por ele. Altas estratégias! Pelo seu lado, consumo, sim, mas sem custos – por regra, usava um livro, digamos durante 20 ou trinta dias, sem o depreciar, devolvendo-o à estante impecável, como se nunca tivesse sido aberto. “Havia lá alguma razão para alguém embirrar?”, confessava Orlando. “Até um dia…”
Chegou a temer o pior, quando viu o dono do estabelecimento vir para ele, na livraria. Num ápice, estava o homem a elogiar-lhe a gentileza de quem cumprimenta sempre ao chegar e se despede todos os dias com o “até amanhã” da ordem, o seu gosto de ler e o cuidado com que tratava os livros.
Ouvido aquele intróito, era tempo de receber a bordoada! “Mas, nada. Não disse mais nada e foi lá para dentro; quando saí, ainda com livro seguramente para mais uma semana, não tive ninguém a quem dizer “até amanhã”.
Aparentando, no dia seguinte, passar por ali à procura de nada, Orlando deu com a livraria fechada. Por causa das dívidas, dizia-se à boca cheia; mas o Lê-em-Pé quis antes acreditar na versão (tudo indica posta a circular pelo proprietário) de que a polícia ordenara o encerramento depois de aí ter feito uma grande apreensão de livros.

Bom homem, aquele, que chegou a pensar que o comércio dos livros lhe podia dar de comer!

Abril 2006
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SOPA DE BATATA
Ingredientes
500 g. de batatas
3 cebolas
1 dl. de azeite
1 ramo de salsa
Folhas de hortelã
Água
Pimenta (para quem goste)
Sal q.b.
Corte as cebolas em rodelas finas e refogue no azeite.
Quando o refogado estiver pronto, junte as batatas cortadas às rodelas e salsa, cobrindo tudo com água suficiente para cozer.
Tempere com sal, a gosto, sem exagerar, e deixe cozer.
No fundo de uma terrina, coloque fatias de pão e por cima as folhas de hortelã.
Deite por cima o caldo com as batatas.
Tape e deixe estar um pouco. Depois, sirva.