domingo, 24 de maio de 2009

O leitor omnívoro (depois, sopa de rama de rabanetes, que se faz em 20 minutos)

Ler foi, desde muito cedo, um acto compulsivo que ele exerceu com a mesma avidez - e o mesmo gosto, benza-o Deus - em tudo quanto tinha letras: uma pedra com uma inscrição gravada, o rótulo de uma embalagem de margarina ou de um frasco de xarope, um livro, um cartaz, o jornal da paróquia ou uma revista missionária, um panfleto anticomunista, o papel que embrulhava os rebuçados, um manifesto sindical, uma carta de alguém conhecido ou de um estranho, a anotação nas costas de uma fotografia ou um pedaço de jornal, as letrinhas pequeninas com as instruções para preenchimento de um impresso, um decreto-lei ou o edital de uma entidade pública, a "literatura inclusa" de um medicamento para o reumático, a página impressa de um missal romano, em latim, o manual do cozinheiro prático, o Livro de São Cipriano ou os Evangelhos apócrifos, o Borda d'Água ou Os Manuscritos do Mar Morto, o Antigo como o Novo Testamento ou o Livro da Terceira Classe, A Bola ou um Flos Sanctorum, o Sans Famille, A Marca dos Avelares ou o Luta Popular, a contestação feita por um advogado de segunda categoria, como o Catálogo de Livros Seleccionados d'O Mundo do Livro, um exemplar raro da edição princeps d'Os Lusíadas ou o traslado setecentista de um acto notarial de quatrocentos anos antes. Enfim, o que for e o que seja, qual omnívoro das letras a quem, ainda por cima, tudo o que come faz proveito.
A sua entrada no mundo das letras não foi, sequer, tão prematura quanto isso; deu-se num tempo de penúria extrema de material sobre que pudesse exercer-se a compulsão de ler. E foi dessa forma que o pouco que havia foi lido tantas vezes que se lhe imprimiu na memória profunda, inapagável - o I.N.R.I. da cruz dos Redentoristas, na igreja matriz de São Vicente, depois repetido em cada cruz de Cristo crucificado (de que haveria, muito depois, de descobrir o significado), o J.A.E. da ordem em todos os marcos e placas da estrada nº 352, aquele escrito ao lado do precário na barbearia do Zé Fiambre que dizia "Cuspir no chão é feia acção", com que se pretendia travar esse bárbaro procedimento dos fregueses, em regra, analfabetos; e as páginas - quase todas - dos livros da segunda e da terceira classes, em especial (pela musicalidade e pela temática campestre) o poema que começava assim: "Palram pega e papagaio/E cacareja a galinha/Os ternos pombos arrulham/Geme a rola inocentinha.//Muge a vaca, berra o touro/Ouvem-se os porcos grunhir/Libando o suco das flores/Costuma a abelha zumbir".
Em casa não havia nada que se lesse, fora os livros da escola, lidos e relidos; fora de casa, era o mesmo - livros não havia e jornais eram só os que vinham a embrulhar algum peixe que se comprava à Palmira Sardinheira, ao Maiaca ou aos Pinuras (por junto, com os Chamiços, as linhagens peixeiras da terra) ou as meias folhas com que, na mercearia, embrulhavam as postas de bacalhau e o sabão. Jornais esses - digamos, pedaços de jornal - que haviam de ser esquadrinhados e lidos, tintim por tintim por um ser insaciável de leitura: neste, um título truncado sobre uma tempestade que fez centenas de mortos na região de ... e dois parágrafos e prosa opinativa sobre uma matéria incompreensível; no verso, o calendário das partidas e chegadas de navios no porto de Lisboa; num outro, ao acaso, o relatório das acções desenvolvidas pela tropa portuguesa na Província de Angola, com o número das baixas infligidas ao inimigo e quatro linhas com os nomes dos soldados portugueses mortos (sempre em acidentes com viaturas), tendo no verso a fotografia, sem legenda, de uma procissão algures no mundo católico. Era assim, por regra - prosas sem os necessários princípio-meio-e-fim, pedaços de frases parágrafos que se liam sem se saber como começavam, outros como acabavam.
Mas, não eram esses pormenores suficientes para inibir, no bom leitor, a compulsão para ler. A tal ponto que, num tempo em que os homens, como as bestas, defecavam pelos campos, acumulando em certos sítios pedaços de notícias e de outras prosas derramadas em pedaços de jornal usados como papel higiénico, muito leu o bom leitor-omnívoro nos muitos momentos em que a humanal e prosaica fisiologia o obrigou a agachar-se nesses locais.
(10 de Agosto de 2005)
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Caldo de Rama de Rabanetes

Ingredientes
Rama frescas (talo e folhas de um molho de rabanetes)

2 cebolas
3 colheres de sopa de azeite
1,5 l. de água
Sal q.b.

Lave a rama dos rabanetes e corte-a aos bocados; faça o mesmo às cebolas.
Deite-as com cuidado numa panela, onde colocou previamente o azeite.
Leve a lume brando, durante 5 minutos, sem tapar a panela.
Ponha a ferver, à parte, a água, temperada com sal. Quando levantar fervura, retire-a e derrame-a sobre os legumes. Tape e deixe cozer durante 10 minutos.