domingo, 31 de maio de 2009

A missa do Paulo, do Sobral

No Seminário do Tortosendo, o senhor "padre prefeito" era pessoa de se temer. Grande, de cabelos cortados ao estilo castrense, olhar de viés pronto à reprimenda e ao castigo, o porte muito militar. Questão de feito; ou de estilo profissional, na convicção de a rédea curta ser o tratamento adequado para jovens em mudança de voz. No caso, mais de uma centena de galfarros.
A prática corrente na casa era a designação de um par dessas futuras vocações, quartanistas, que haviam de cumprir, durante um trimestre lectivo, funções de sacristão. Quem entrava, aprendia com quem saía, que a passagem do testemunho tinha os seus quês - tratar das hóstias , abastecer as galhetas de água e vinho para as missas (4 a 6, por dia, tantos eram os padres em exercício), preparar a paramentaria para os ofícios litúrgicos e ajudar à missa, pois então, que se dizia ainda em latim. Assim fez o Paulo, do Sobral, na passagem do testemunho; e lá recomendou muito bem a partida obrigatória que os novos recrutas haveriam de pregar (na aparentemente maior das inocências) ao "padre prefeito".
Para dizerem missa, os padres põem várias peças - uma alva, de linho, que lhes desce até aos pés, cingida por um cordão na cintura, permitindo ajustar-lhe a altura, chamado cíngulo, uma estola ao pescoço, que cruza o peito e se cinge ao nível da cintura; por cima de tudo, a casula, da cor correspondente ao tempo litúrgico e uma grande cruz nas costas, que enfia pela cabeça.
No guarda-roupa daquele instituto religioso havia uma casula verde, feia, o tecido muito rapadinho e especialmente pequena. Em padre de baixa estatura, enfim, passava; mas não ia especialmente bem com a altura do "padre prefeito", a quem ficava visivelmente curta. No primeiro dia do Tempo Comum, que é quando se usa paramentaria verde, quando acabou de se vestir para a missa, na sacristia, o "padre perfeito" teve um ataque de fúria. Risos para dentro dos dois "sacristas", ar de "anjinho que não percebe" para fora, o ridículo de um padre furibundo a cair da roupa ali mesmo à sua frente.
A sentença veio rápida e fulminante: tendo atingido os limites da paciência (a cena repetia-se em cada nova incorporação de sacristães), o "padre prefeito" mandou que a casula fosse queimada nesse mesmo dia.
Os dois quartanistas ouviram, sem acreditar - aquelas cabecinhas nunca tinham imaginado que se pudessem queimar vestimentas de missa. "Hoje mesmo, sem falta", repetiu o padre-calmeirão, acrescentando que nunca mais queria ver a dita peça à sua frente.
A queima (que o mais jovem dos infantes sentira, primeiro, como auto de fé sacrílego, aceitando-a, depois, com uma certa incomodidade) fez-se nos terrenos da quinta anexa. O caminho para lá foi feito em procissão: oficiante, o Paulo, do Sobral, à frente, com a casula vestida e de mãos postas; atrás, segurando a "cauda", os dois sacristães em exercício, todos a cantar o "Avé, avé, avé Maria".
Para que conste: a peça ardeu muito bem, deixando um montinho de cinza de todo insignificante. Em boa verdade, não se perdeu grande coisa; apenas, a possibilidade de, pelo menos uma vez no ano, a "infantaria" poder, através dos seus "sacristas", pregar uma partida inocente ao padre-repressor. Soubessem eles a humilhação que o prefeito sentia ao ver-se com aquela peça vestida...