domingo, 14 de novembro de 2010

O conde 100 milhões, o do "exemplar único" dos Sermões


Em circunstâncias normais, os caminhos do senhor conde nunca se cruzariam com os meus. Achei curiosa a sua entrevista àquele jornal diário, edição de domingo, arrumei-a na caixa do material efémero, e pronto, nada mais. Assunto arrumado e esquecido, não fosse o caso de a vida ter certas coisas.

No dia 30 do mês passado estive de novo com ele, na sua casa da Linha, a falar do mesmo livro. Como da primeira vez, o cão esteve sempre ali, a assistir; à entrada rosnou-me de forma desagradável, e à saída tentou ir-me às canelas. Sua Aristocracia continua a dar-lhe ordens em Inglês.

Paz do Amagal, o conde, vale para cima de 100 milhões, o montante da sua carteira de investimentos em empresas; em imagem, andará pelo triplo daquele valor. Cotado em várias praças europeias e norte-americanas, carros e casas constituem o restante património do senhor – a casa da família, em Mangualde, praticamente uma ruína deixada em herança pelo pai, agora restaurada, é o ex-libris patrimonial do actual titular; vale uma pequena fortuna.

Para lhe ilustrar o título, o ex-estudante de Cambridge decidiu agora fazer uma biblioteca valiosa. Disse-o com todas as letras ao tal jornal, onde o mostravam com um alfarrábio aberto, em inteira de pele, de rosto vistoso, possivelmente um tratado de religião do tempo de D. João V. Podia o senhor conde ter feito como um outro rico, também famoso, que mandou forrar um enorme escritório da habitação com estantes de parede inteira, totalmente preenchidas com umas largas centenas de lombadas brilhantes, agrupadas por temas, predominando as de cor vermelha, com ferros e letras gravados a ouro, havendo-as também azuis e castanhas; mas, não: livros a sério, mesmo sem serem muitos, queria o conde, raros e valiosos; ”se possível”, proclamava com humilde presunção, “duas ou três ou quatro obras que nem a Nacional, Coimbra e Mafra tenham”.

O meu interesse em ganhar dinheiro, vendendo-lhe aquele que passava a ser o único exemplar de uma edição princeps que os especialistas davam por inteiramente perdida, e alguns consideravam inexistente, pareceu-lhe trivial. Foi disso que falámos no nosso primeiro encontro. E nem o preço lhe pareceu muito elevado, a confirmar-se a valia do livro de que falávamos; teria, isso sim, eu compreendia, não é verdade, que falar com alguém, um entendido, só para ter a certeza de que estava a fazer a compra certa, pelo preço justo, não para confirmar o que quer que fosse, mas apenas para justificar o dinheiro que lhe pagava para o ajudar nestas coisas. Ah, e teria de ver o livro, que era o que, a partir daquele momento, mais queria. Num extremo de entusiasmo, declarou-me, em inglês, que me queria ver de novo, ali, o mais depressa possível. Posto o que, o rafeiro inglês e o conde de Alcatruz me conduziram à saída.

Também eu queria vê-lo. Liguei à senhora que me tinha rogado o livro, semanas atrás, num sábado de feira, no Largo de Santa Clara; em vão: “não está”, “ninguém sabe por onde é que ela anda, de vez em quando desaparece sem dizer nada”, “não, não somos família, a casa é dela, eu estou cá por esmola”, “se quiser deixar recado, se eu a vir…” e coisas do género, no primeiro telefonema e seguintes. Uma semana inteirinha nisto, todos os dias, sem eu dizer nunca ao que ia. Comecei a ver a vida a andar para trás. Cheguei a telefonar ao Martinho, meu supremo guia nesta coisa dos livros velhos, sem lhe abrir o jogo: “Se esse livro aparecesse aí no mercado, era a notícia de abertura de todos os telejornais! Até o grão-mestre da Maçonaria ia de joelhos beijar a mão ao cardeal-patriarca! Era bom, era, e que viesse ter aqui à minha loja! Agora o menino, sempre tão racional, também acredita que las hay? Deixe-se lá disso e venha mas é visitar o seu amigo, que tenho cá muita coisa boa que lhe interessa. Considere-se osculado, mê’migo. Mande sempre.”

Confesso que senti suores frios ao pensar que a senhora poderia ter-se evaporado. Com método, sem pressas, revi o filme dos acontecimentos: o nosso encontro, sem nos conhecermos de lado nenhum, à porta daquele alfarrabista acidentalmente fechado, por falecimento de uma pessoa de família, ela a abrir a mochila verde-azeitona e a tirar de lá o livrinho, com uma encadernação bastante cansada, mas com o miolo em excelente estado, a dizer numa voz sussurrada “Exemplar único”, e eu a confirmar, ali mesmo, a ausência de qualquer carimbo no livro e que tinha as páginas todas. “Como preciso de dinheiro urgentemente”, dissera ela, “vendo por 5 mil euros; com tempo, nos Estados Unidos, conseguia fazer trinta vezes mais”. Disse-me que sabia do que falava, acrescentando que não lhe perguntasse onde arranjara o livro, mas que estivesse descansado, porque não era roubado.

Quando me ouviu tartamudear a sugestão de lhe dar uma resposta, “digamos, daqui a uma semana”, ela percebeu que eu estava a pensar na velha história do vigésimo premiado. Mas, eu insisti que tinha de falar com umas pessoas mais entendidas em tais matérias e de receber uns dinheiros, acrescentando “afinal ainda é uma verba bastante elevada”. Nos olhos dela eu via claramente umas asas de anjo pregadas nas minhas costas, no momento em que me veio à ideia a entrevista do conde, vislumbrando que aquele podia ser o meu dia de sorte. Cinco dias, nem mais um, “descontando o domingo”, foi o prazo dado pela donzela, pelo qual eu lhe daria mais dez por cento.

Antes de falar com o conde, a primeira vez, eu já sabia que o livrinho cumpria os requisitos de Paz do Amagal –ausente das obras de referência dos livreiros-antiquários e dos catálogos das bibliotecas de livro antigo, toda a gente do meio, com quem falei, declarou como desconhecida a obra que eu me propunha vender ao senhor de Alcatruz.

Depois de uma semana terrível em que fiz tudo para a encontrar, passou mais uma semana, e nada. Atado de pés e mãos, num desespero, eu só não queria que o conde me procurasse. Telefonou-me no dia dos meus anos e fui lá estar com ele. Podia ter sido pior, confesso, mas foi muito, muito mau.

Estava feliz, o homem, quando me recebeu. “Sit”, ordenou ao rafeiro, que obedeceu; sem me cumprimentar, fez o elogio do livro que eu me propusera vender-lhe, pegando nele e afagando-o com as costas da mão direita, passando depois o polegar a todo o comprimento da lombada, da base para a cabeça, demorando-se nas nervuras, em movimentos lentos, de extrema sensualidade, que não interrompeu durante a nossa conversa.

Havia um forte contraste entre o conforto da sala-biblioteca do conde de Alcatruz, onde estávamos, e o desconforto interior que eu sentia em crescendo, que mal conseguia dissimular. Era claro para mim que tinha sido ludibriado pela donzela da mochila militar; mas, o ricaço e eu tínhamos versões diferentes daquela história. “Os senhores”, ia dizendo Paz do Amagal, pelos vistos referindo-se a mim e à donzela desaparecida, “os têm um modelo de negócio curioso, que não cheguei a perceber, mas vá lá. A sua sócia procurou o meu consultor; trazia o livro, este, de que o senhor me tinha falado. Fez um excelente trabalho, o Trindade; para além do que lhe dou todos os meses, pelo apoio que faz o favor de me prestar, acabei por lhe estabelecer um reconhecimento, digamos, uma comissão para esta compra, que ele fez finca-pé em não receber, mas que vai acabar por aceitar. É curioso o facto de o negócio, que estava a ser tratado directamente entre o vendedor e o comprador, o senhor e eu, ter sido concretizado por representantes nossos; não é a forma como estou habituado a trabalhar, mas funcionou, e isso é o que interessa. O livro é uma beleza e, ao que se sabe, exemplar único, por um preço justo, num negócio em que todos ganharam. Quanto aos 20 mil que me custou, digamos que paguei o preço justo”. Fez uma pausa e eu preparei-me para o assalto seguinte, que prometia maior violência. “Se foi uma estratégia para aumentar o preço, conseguiu-o, mas de uma forma –já que chegámos a tais pontos, deixe-me ser franco– lastimável. Quase diria, sem ofensa, muito pouco séria.” Dito isto, calou-se; eu estava na última, confesso, e ele deixou-me estar; estava à espera de mais violência, mas não. O conde poisou o livro e acariciou-o de novo, desta vez com a mão aberta, muito lentamente, com os olhos em mim. Um século depois levantou-se, apoiando as mãos nos braços da cadeira; o cão também já estava de pé. Sorria, no momento de encerrar a conversa, para dizer: “Enfim, senhor conde, as coisas são como são! No negócio dos livros, como nos outros, e em tudo na vida, estamos sempre a aprender. Agora vamos embora, que estes senhores têm mais que fazer! “ Foi o cão que me conduziu à saída.

Andei desvairado, uns tempos, capaz de cometer uma loucura na pessoa da donzela da mochila militar. Assim se tivesse deparado a ocasião, que motivação tinha-a de sobra; mas a dama não apareceu. Durante uma semana, ou mais, praticamente não comi e não me recordo de ter tomado banho; cheguei a dormir na rua; depois passou-me e, no regresso a casa, como novo, com o desaire do livro completamente varrido da minha vida.

“Esperava encontrá-lo aqui. Pensei que seria uma questão de tempo; mas demorou”. Não constava que eu conhecesse a senhora que tinha falado, mas o que dizia era verdade: eu ia àquele bar com uma certa frequência, mas tinha feita um intervalo tão longo que o barman me serviu a bebida do costume com uma pedra de gelo em vez de duas, como eu gostava. Ela estava atrás de mim quando falou de novo; a sua boca desprendia um bafo de álcool que seria suficiente para anestesiar um ser vivo dez vezes mais pesado do que eu. Foi então que tive a certeza de que já não queria vingar-me da donzela da mochila militar.

Nos minutos seguintes, só ela é que falou. Sem beber nada. Em resumo: o Trindade tem loja aberta em Lisboa (isso sabia eu, mas não que era ele – ou ainda é – o consultor do Paz do Amagal), onde a donzela o procurou ainda antes de tropeçar em mim, na Feira da Ladra. Falou-lhe no livro, sem lho mostrar, e ele, desde logo lhe disse que estava interessado na compra, mas que a donzela teria de lhe dar uns dois dias, antes de fecharem o negócio. “Provavelmente, para baixar a minha expectativa de preço”, acrescentou a minha companheira de bar, “falou da possibilidade de a mesma obra existir em Mafra, na Biblioteca Nacional ou em Coimbra, na Biblioteca da Universidade, o que, disse-o com todas as letras, baixará muito o preço – digamos, para um pouco menos de metade.” Voltaram a encontrar-se na loja do Trindade na data combinada, “com o trabalho de casa feito.” Quando ele lhe falou no exemplar da obra que existiria na Biblioteca de Mafra, tornou-lhe a senhora: “Este não é o livro de Mafra, meu caro senhor; não tem qualquer marca, como pode verificar.” Para o livreiro-antiquário, foi garantia suficiente. Acertaram então o preço da venda: 8 mil euros, em dinheiro, que ela recebeu na tarde do mesmo dia.

“E aqui estou eu. Há-de perguntar porque é que vim atrás de si. Explico: desde aquele dia, a minha vida tem sido um inferno; a todo o momento – de noite é pior –, penso que a Polícia me vai entrar em casa, para me levar presa por causa do desaparecimento do malfadado livro, de Mafra. Como já percebeu, eu sou uma incompetente nestas coisas. O meu pai, sim; com ele não haveria estas confusões. Ser filho de padre não é garantia de saber dizer missa, não acha?” Fez uma pausa, de descanso, para continuar, depois de suspirar na direcção do meu nariz. “Agora só quero que tudo acabe, preciso de sair deste pesadelo. Naquele dia, pedi-lhe 5 mil euros pelo livro; fique com ele sem gastar nada. Faça como quiser: guarde-o para si, ou entregue-o na Biblioteca de Mafra – mesmo se não for o livro deles, hão-de aceitá-lo. Também eles pensavam que o deles era exemplar único.” Calou-se e saiu, deixando-me um saco de plástico verde com o livro dentro.

“Sermones selectissimi”, o melhor livro saído dos prelos de João Barreira, "liureiro de sua alteza", é agora o mais valioso da minha biblioteca. O meu exemplar não tem qualquer marca ou sinal.