domingo, 19 de setembro de 2010

A transfiguração de Lucindo Hermenegildo

Eu tinha as minhas dúvidas, mas era o único. Que eu soubesse, nunca ninguém tinha visto o Hermenegildo em tais preparos, mas estava assente, no grupo, que o homem tinha momentos de transfiguração. Quero dizer, tornava-se outra pessoa, pronto!

Tal habilidade infundia no pessoal um certo respeito, que em alguns era medo a sério. Não é verdade que, uma vez, ele tinha posto o Jeremias a falar com o avô, que tinha morrido há mais de cinco anos? “A voz era a do meu avô”, dizia ele, com os braços em pele de galinha e os pelos todos eriçados; “Falou-me de coisas que nunca contei a mais ninguém e que tenho a certeza que ele levou para a sepultura”, acrescentava o amigo Jeremias, com o queixo a tremer de verdade. Não querendo ofender as convicções e os sentimentos de cada um, eu “moita, carrasco!”; mas ficava no que me parecia. Era melhor assim.

O Hermenegildo era filho, ou enteado, de um indivíduo da Brandoa, que me chegou a vender um carro em segunda mão, pai de uma miúda chamada Ana Júlia Qualquer Coisa, professora de Ciências Naturais, com fama – o pai – de bom mecânico. Os mais chegados tratavam o figurante por Gildo, um diminutivo que convivia mal com modos abrutalhados do rapaz. O ilustre personagem entrara para a nossa Secção, a transpirar muito, uma semana depois da morte do Almeida Sarna. A princípio, não lhe achei grande piada – fazia-me impressão aquele corpanzil imenso, sempre suado, e a sua insistência despudorada para que toda a gente levasse os carros à oficina do pai, ainda por cima longe que nem um burro.

Detestava-o a tal ponto que, quando me contaram as primeiras transfigurações do “artista”, em jeito de vingança (eu tinha, na altura, dezassete anos), desejei vê-lo transformado no dr. Pramodes – a placa de advogado ainda lá está no número 14 da rua do Crucifixo – a entrar um dia na Leitaria Afonsina, pedindo o habitual garoto claro e declarando, alto e bom som, a comer com os olhos o sobrinho do dono da casa: “Por um garoto assim, senhor Afonso, eu era capaz de mandar às urtigas todas as leis deste país!”. Como tentei imaginar a “versão hermenegildiana” de um conhecido pregador de Semana Santa, por terras de Braga, que eu ouvira declarar-se confessor, “ nos seus anos de seminarista, do senhor Presidente do Conselho”, um personagem por quem o nosso colega não escondia uma certa admiração. Depois, amainei.

Todos o tínhamos por homem honrado; muito terra a terra, reunia todas aquelas qualidades que é comum enumerarmos quando morre alguém. Provavelmente por causa da fama dos seus poderes ocultos, uma sugestão sua funcionava, para mim, como uma ordem. Por isso é que aqui estou, convidado para o casamento daquele meu colega, pelo civil, “com a mulher mais bonita do mundo”, com este fato que me custou os olhos da cara, num restaurante dos mais caros da cidade – onde estou há horas –, por sinal numa zona bastante decadente.

Vim relativamente cedo, como me pedira o Dias-Póstumo (as minhas desculpas: não costumo chamar ninguém por uma alcunha, mas, em estado de indignação, ponho frequentemente os princípios de parte). A ideia era irmos conversando, na maior das informalidades, até à chegada da “mais bela”, nascida e criada na avenida central do Poço do Bispo, que eu não conhecia, nem de vista. E assim se foi fazendo, sem nada a assinalar, a conversa fluindo com naturalidade, alimentada por saborosíssimos aperitivos líquidos e sólidos, servidos por uma meia dúzia de empregados, de vestimenta rigorosa e modos a condizer. Passou bastante tempo; da “mais bela”, nem sinal; quanto a convidados – nestas coisas, há sempre convidados, não é? – também nada. Imperturbável, Hermenegildo continuava a secar copos, indiferente ao tempo e provavelmente à minha pessoa. Tendo começado com sumo natural, de laranja, o 2º escriturário da 3ª Secção já tinha passeado o palato pelos brancos durienses, acabando por se fixar – uma meia hora depois do começo dos actos – num malte de 42 graus, simples e sem gelo, em doses duplas, à razão de um por cada 8 minutos. Eu também já ia estando muito “carregado”; tenho ideia de que ainda conseguia distinguir as coisas de forma, digamos, sofrível, mas começava a sentir volatilizarem-se as minhas noções de tempo e de lugar.

Já havia menos luz lá fora, quando me voltei a fixar na conversa. Dias-Póstumo falava, então, de uma sua estada em Espanha. Nele – homem caseiro cujo sedentarismo radical apenas consentia uma saltada à terra, no Verão – uma viagem a Espanha era coisa de admirar. Surpresa maior, em homem de limitados recursos culturais e nenhumas leituras, foi ouvi-lo perguntar-me o que é que eu achava de Alcalá de Henares, começando a dar-me pormenores da terra – as pessoas, os cheiros, o tempo que fazia, as casas, e tudo o mais que pertence. Mas, no seu discurso, eu não conseguia reconhecer a Alcalá onde estivera uns anos antes; prestando mais atenção, senti-me conduzido através de ruas e praças de outro tempo, vendo pessoas e casas desaparecidas pelo menos há duzentos anos, provavelmente no tempo em que lá nasceu Miguel de Cervantes. Uma descrição como a que eu ouvia, não vem nos livros; e se viesse, não a poderia ter lido o Hermenegildo, atentos o seu escasso capital cultural, acresentada pela ausência absoluta de hábitos de leitura.

Eu tinha a certeza de que Dias-Póstumo nunca saíra do país, como sabia ser impossível que ele – sequer em sonho ou transfiguração – tivesse lido o D. Quixote de la Mancha, do Cervantes, ou o que quer que fosse relacionado com a obra ou o autor. Mas, falar assim de uma cidade, só poderia fazê-lo quem lá tivesse vivido três séculos atrás. Nunca, o 2º escriturário da minha Secção.

A densidade do discurso do meu interlocutor começava a confundir-me, confesso, a pontos de me provocar uma espécie de vertigem, coincidente com o lusco-fusco da sala em que estávamos, dando-lhe um toque do que eu imaginava ser o ambiente de uma taberna manchega frequentada pelos contemporâneos de Sancho Pança. Dias-Póstumo atacava o seu undécimo scotch duplo, sem gelo, quando passou a exprimir-se em Espanhol, primeiro em versão “minimal años ochenta” e, logo depois, fluentemente, num vernáculo madrileno de quando governou o senhor D. Filipe I de Portugal. Também mudara de assunto, que passou a ser a obra, em vez da terra natal do autor.

Embalado, deixei-o conduzir-me aos mais saborosos e inverosímeis episódios da vida do cavaleiro da triste figura; o entusiasmo com que falava e a autenticidade do que dizia, acabaram por me transportar ao local dos acontecimentos; imperceptivelmente, passei de ouvinte a interveniente. Eu estava lá, tenho a certeza, assistindo a tudo e participando em vários episódios, como aquele da escolha dos alfarrábios dados como responsáveis pela insanidade do cavaleiro de la Mancha, que eu me vi ajudando a queimar numa grande fogueira, no pátio da estalagem, que eu conhecia, como leitor, do capítulo VI da obra maior de Cervantes.

Num certo momento, ao ver uma mão que se aproximava de uma cintura feminina que por ali andava, a pontos de lhe dar um beliscão, deixei escapar um comentário que soou malicioso. Não sei se o meu interlocutor me ouviu, ou não; vi-o já de pé e, depois, afastar-se da mesa em que estávamos. Pelo espelho da parede em frente, vi-o passar por trás de mim, direito à saída. “Don Miguel!”, ouvi o criado dizer, com uma vénia, enquanto lhe segurava a porta, já a esfregar, entre o polegar e o indicador da mão direita, uma moeda amarela – com toda a certeza um dobrão de ouro de Filipe II de Espanha.

Continuo aqui sentado, com uma bebida à frente; é a quarta desde que espero, sozinho. Já deve ter passado muito tempo. Um emissário do chefe dos criados acaba de me perguntar se pode mandar servir. Do Dias-Póstumo, o emborca whiskies, do Lucindo Hermenegildo, filho do meu mecânico da Brandoa, o mais desprezível escriturário da minha Secção, ninguém aqui saberá nada; nem do transfigurável ex-futuro cara-metade da mais bela do Poço do Bispo, o safado que me pôs, há uma hora, ou pouco mais, a queimar os livros, nem do filho da mãe que se levantou desta mesa há mais de uma hora e meia. Também creio que nada saberão de Quixotes, nem de Sanchos, nem do don Miguel que saiu pela porta espelhada lá do fundo, ou da moeda de ouro do senhor don Felipe que eu vi o criado-porteiro dos salamaleques meter no bolso superior do colete.

Receio ainda que haja uma conta para pagar.

Aqui sentado, não sei o que faça.