
Em surdina, diz-se que tudo está muito mudado. No transporte também. Olhem para dentro do cacilheiro: até onde a vista alcança, toda a gente com um livro na mão, toda a gente a ler! Aqui o vizinho do banco da frente, caixeiro reformado, meu conhecido de vista há uns 30 anos, “enrolado” num clássico policial; na mesma fila, duas senhoras, uma menina, dois moços e três cavalheiros, “navegando” – se a vista não engana e por ordem – um Steinbeck, um Harold Robbins, um Cardoso Pires, a história de um estadista meio conservador, um Saramago, um Reverte, outro Saramago e um tal de que não se consegue ver o título. Nas filas mais atrás, é o mesmo, e igual em todo o barco, predominando as edições de bolso, as narrativas mais curtas, as colectâneas de contos, mas comparecendo igualmente a poesia, o policial, a ficção científica e a banda desenhada. Assim se navega, aqui onde começa o Mar da Palha, nesta carreira e nas outras, entre Cacilhas e o Cais do Sodré, e nos barcos do Barreiro e do Seixal.
É uma experiência recente, esta biblioteca de levar e trazer. Em terra de grandes arrojos de imaginação e de eficácia concretizadora, o mais complicado foi escolher o nome entre os 7.543 propostos. Ficou “Biblioteca de Viagem” (um nome que, segundo consta, não estava na lista, que, no entanto, ditou o número de livros em circularção - exactamente 7.543 livros.
Por trás deste sucesso, está um princípio muito simples: os cais de embarque, na margem sul, foram transformados em biblioteca, passagem obrigatória para se entrar no barco. Enquanto se espera, pode-se folhear um livro e, depois, levá-lo para consumir no caminho – para lá e, no fim do dia, para cá. Dois números deste sucesso: primeiro, o sistema electrónico de controlo e vigilância, em que foram activadas novas funcionalidades, detectou 3,2% de passageiros sem livro no primeiro dia; segundo, todos os livros levantados de manhã regressaram à base antes da meia-noite do próprio dia.
Não falta quem assegure que vão replicar a “Biblioteca de Viagem” nas redes de comboio e de autocarro da periferia norte de Lisboa.
Em Quinta-Feira da Paixão não se fala noutra coisa.
Com uma pontita de inveja, é verdade, decerto por não ter sido eu o pai da ideia, vou andar por aí, nos dias mais próximos, a dar fé. Não se dê o caso de tudo ser uma brincadeira deste 1º de Abril de 2010.