terça-feira, 5 de outubro de 2010

Tributo aos livros, de segunda a sábado




As carrinhas deixavam na paisagem um rasto castanho acinzentado. Mas, o que fazia delas objectos singulares era o recheio e não propriamente as cores, afinal, idênticas às das paredes e móveis das repartições públicas e as fardas dos polícias e dos servidores do Estado. O ponto de partida era a capital do império em fim de vigência, e o destino as zonas rurais. Carregadas de livros, para empréstimo, as carrinhas Citroën de chapa ondulada assentavam arraiais no largo ou praça da aldeia, tendo como pano de fundo um país atrasado, com a imprensa e a produção editorial enquadradas pela censura, uma taxa de analfabetismo próxima dos 50%, praticamente sem bibliotecas públicas e com índices de leitura estatisticamente irrelevantes. Chegaram a ser quase 50 as bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, movimentando mais de 300 mil leitores e emprestando, por ano, uns 3 milhões de livros.

Chegaram a ser consideradas instrumentos perigosos ao serviço da subversão social e política – além de prejudicar a vista, ler só faz mal às cabecinhas menos fiéis à rotina da obediência e toda a gente sabe que é nos livros que os “agentes do mal” põem certas coisas destinadas a minar os fundamentos da religião, da família e do Estado. Alguns funcionários dessas bibliotecas tinham ficha na polícia e as suas actividades eram acompanhadas criteriosamente; chegou a fazer-se chegar “a quem de direito” a conveniência de serem demitidos. É o que dizem os documentos conservados nos arquivos de algumas instituições muito importantes ao tempo, entretanto extintas.

Foi por causa das bibliotecas que R. C. passou muito mal entre os anos de 1958 e 1964. Prenderam-no, mas não exactamente por atentado contra a vida ou o património alheios, nem por andar a ler o “Cavaleiro da Imaculada” (de facto, só fundado em Janeiro de 1960). Ele já estaria referenciado há algum tempo – o Raul aparecia em certos sítios, dizia certas coisas e evidenciava certas preocupações, lia certos livros e certos escritos, além de acompanhar com certos indivíduos, também eles com nome nos registos da polícia. Tinha casado três meses antes.

“Eu andava na Escola Comercial, na altura” – é o Raul em discurso directo – e tinha assim um interesse pelas leituras”. Ele era dos que sentiam que “os jovens precisam de ler, a população precisa de ler”. Ele foi um dos obreiros da biblioteca na Sociedade Filarmónica União Artística Piedense (na Cova da Piedade, Almada), onde juntaram Jorge Amado com Zola, Gorki e outros autores de referência, incluindo calhamaços de filosofia, para operários que sabiam ler – “coisas não muito complicadas”, acrescenta ele; para comprar livros para a biblioteca, puseram a imaginação e a vontade a trabalhar: recolhiam os que lhes davam, organizavam bailes e pediam por boca – no arraial da festa de Nossa Senhora da Piedade, lembra-se ele de uma das quetes mais rendosas alguma vez realizadas naquela freguesia da Outra Banda. E, atrás dos livros, vieram outras coisas: teatro, palestras, cursos de formação – um de corte e costura foi dos de maior sucesso na aldeia-vila predominantemente operária, no fim dos anos de 1950.

Ele tinha aquela ideia dos livros e a convicção do muito que eles podem fazer pela felicidade de cada um. Levar livros aos outros foi um projecto de vida que tratou de pôr em prática também no local de trabalho – mas, aí, não lho consentiram: a direcção do banco (o Montepio Geral) não autorizou que escrevessem a instituições e autores, a pedir livros, “porque o Montepio não tem necessidade de andar a pedir nada a ninguém”. Na terra da sua residência, depois da Sociedade Filarmónica, passou pela biblioteca da Cooperativa Piedense, uma colectividade com maior capacidade financeira e “uns rapazes jeitosos que gostavam da biblioteca, que gostavam de livros” e muitos leitores: “havia muita malta nova que lia, lia, lia”. Sob vigilância (e intervenções, amiúde) da polícia, guardiã de um regime que sentia a cultura como uma ameaça. Apesar disso, no conjunto das bibliotecas populares, Almada e Cova da Piedade contariam, ao tempo, com um acervo a rondar os 10 mil títulos.

Durante os anos da prisão, Raul fez o trajecto concebido pela inteligência da Situação para os “indivíduos da sua laia”, com os tratamentos adequados prescritos para o seu caso e estado, quiçá com o propósito de lhe limarem alguma aresta mais viva ou de lhe corrigirem algum defeito. Acaso na convicção de conseguirem tirar-lhe da cabeça a “mania dos livros”. Sem sucesso, apesar dos dois mil dias passados no Aljube e em Caxias (não estou certo se também em Peniche).

Costumo ver o Raul na biblioteca pública cá da terra, nos sábados de manhã. “Está lá todos os dias”, dizem-me aqui do lado, “passa lá mais tempo do que com a família.” Fala quem não sabe!

“É porque gosto, pronto!”, diz o Raul. “Noutro tempo, o que era preciso a gente esgadanhar para conseguirmos a milésima parte do que aqui há para ler. Porque é que venho cá todos os dias? Não, não é para recuperar o que não pude ler quando me tiveram preso, nem sequer para ter a certeza de que eles não conseguiram tirar-me a “mania dos livros”; tão pouco, para pagar, lendo, àqueles que, à custa de dedicação, inteligência e esforço, nos põem todos estes livros à disposição – que eles merecem tal reconhecimento. Mas, a verdadeira razão é outra, uma coisa muito minha”, acrescentou, calando-se a seguir.

Quando voltou a falar, o Raul exibia a paz de um sábio. “Sabe, meu amigo, em certos momentos, quando se está preso, tem-se um medo muito grande de enlouquecer; também passei por isso. Depois, um dia, não sei por que carga de água, tive a consciência de que isso já não me acontecia e descobri porquê – nas alturas mais difíceis, eu reconstituía, de memória, um livro que tinha lido, como se estivesse a lê-lo de novo. Umas vezes, bastava um livro para ultrapassar uma situação difícil; quando esta era mais demorada, depois do primeiro, usava um segundo livro. Sem eles, os livros, a prisão teria sido muito mais penosa. Por isso é que venho aqui todos os dias – para lhes agradecer.”