domingo, 28 de março de 2010

Zenão Lopes, sobre bibliotecas

Chegou aí um escrito do Lopes. Sem endereço e sem data. Cá vai, com licença de Vossas Senhorias.

(...) aqui vão umas variações telegráficas sobre bibliotecas e prisões bem mais interessantes do que essa essa história, que se conta, de eu ter estado preso, quando taparam o buraco da porta do Arquivo.
1. Prisão que se preze, tem a sua biblioteca. Na prisão de ..., cá na terra, o advogado João Vale e Azevedo fez trabalho voluntário na biblioteca. Fez bem. O facto de o também ilustre senhor Alphonse Capone ter feito idêntico voluntariado, umas décadas antes, em Alcatraz, ali à vista de São Francisco, não tira um cabelo de mérito ao nosso advogado.
2. O doutor Michel Garel era um respeitável especialista em manuscritos antigos, de créditos reconhecidos internacionalmente nos manuscritos hebraicos. Foi preso por causa de um - o H52 - do século 13, raro, de valor inestimável, desaparecido da Bibliothèque Nationale de France na entrada do século 21. No mercado da especialidade, o dito H52 chegou a cotar em 300 mil dólares, preço por que chegou a ser vendido, apesar de amputado em muitas páginas, ao que consta para esconder a sua distinta origem. Não consta que monsieur Garel tenha exercido de bibliotecário na prisão.
3. No melhor estilo gareliano, em versão portuguesa, o doutor Arnaldo Faria de Ataíde e Melo, funcionário superior da Biblioteca Nacional. Nos idos de 1948-49, o distinto personagem subtraiu da B.N. umas dezenas de obras, que chegaram a ser avaliadas em mais de 3o mil contos, um caso com um mediatismo incomum para a época. Vendidas em Lisboa, algumas das obras eclipsaram-se, de vez; outras voltaram à Biblioteca, umas tantas tornadas irreconhecíveis pelos tratos de mutilação sobre elas exercidos (num leilão, nos primeiros anos deste século, foi recuperada mais uma). Não chegou a ser condenado o doutor; nem se notabilizou como bibliotecário, na prisão, onde se apagou feito uma lástima de gente. Nos seus tempos de insuspeito, o doutor notabilizara-se por via da publicação de um estudo pioneiro sobre a "Arte de Furtar".
4. O senhor Junot, general de Napoleão, mas não maréchal de France, que ganhou fama de ladrão (não apenas) por se ter apropriado da nossa "Bíblia dos Jerónimos", não foi preso por isso. E a dita preciosidade só regressou à terra depois de o rei de França a ter resgatado por mais de 100 mil francos, pagos à viúva e herdeira do general de muitas estrelas, possuidor de uma biblioteca privada onde figuravam obras portuguesas de estalo, em especial mapas manuscritos, não se sabe se também levados de cá.
5. Num outro registo: Bonifácio A., se não me engano no nome, operário metalúrgico, foi preso como muitos outros "sindicados", na Primeira República Portuguesa, "por razões sociais" (que era o mesmo que dizer, em razão da sua militância sindical). Tendo arranjado uma ocupação paga, na prisão, mandava todas as semanas uma parte da respectiva remuneração, para ser aplicada no desenvolvimento da biblioteca do Sindicato da Metalurgia de Lisboa.
6. No rescaldo da não eleição de Humberto Delgado como presidente da República, em 1958, prenderam R. Cordeiro. O crime por que o mantiveram preso mais de 4 anos foi ter andado a formar bibliotecas nas colectividades da Cova da Piedade. Em Caxias e Peniche, que também frequentou, não havia biblioteca de que tomar conta.

Com esta, ala que se faz tarde. É bem possível que, um destes dias, volte a tão distintos registos.

Modestamente, vosso, do c.
Zenão