domingo, 5 de setembro de 2010

Louvor às bibliotecas de livre acesso


Vai-se a uma biblioteca à procura de alguma coisa em concreto – o livro tal do Coetzee, uma colectânea de contos de Machado de Assis, os Cem anos de Solidão, do Garcia Marquez (ou, do mesmo, O Amor nos Tempos de Cólera, que o Cardoso Pires considerava o seu melhor livro), ou A República dos Corvos, o melhor escrito deste mesmo José (sentença do professor Óscar Lopes, numa entrevista), o último romance do Saramago ou as obras do autor Fulano ou Sicrano; também se pode ir em busca dos livros que tratam do assunto Tal, de um jornal ou de um filme específico. Numa situação destas, sabendo o que nos move, é como no supermercado: vai-se directamente às estantes e, se lá estão as obras que procuramos, é só tirar e usar ali mesmo, no momento, ou pôr no carrinho, registar na saída e ala para ler lá fora, no prazo regulamentar. De borla, sem gastar um avo!

São bibliotecas extraordinárias, as chamadas bibliotecas de livre acesso, em que os livros estão todos à vista do leitor e este os procura directamente nas estantes, para utilizar no local ou fora dele. Gosto dessas, pelas razões óbvias da sensação da liberdade de movimentos, de me relacionar directamente com os livros, sem intermediários. Mais ainda, pela possibilidade de usufruir de um certo tipo de prazer, só ao alcance dos mais ousados frequentadores de bibliotecas.

Venâncio é um desses afortunados.

Quem o quiser encontrar nos sábados, basta passar pela biblioteca municipal; se lhe perguntam o que lá vai fazer, responderá (já mo disse a mim) “nada de especial; só ver”. Certo é que passa lá, todas as semanas, duas ou três horas, a fazer nada, mas sai de lá – sempre – com dois ou três livritos, para consumo privado na semana que vai entrar. “Então, de quem são esses?”, arrisquei da última vez que o vi em tais preparos. “Olha, um consagrado e mais estes dois que eu não conhecia, mas que poderão ser interessantes. Vamos lá ver”, foi a resposta do amigo Venâncio (o “consagrado” era o Tolstoi, dessa vez o Hadji-Murat – Tolstoi é um dos autores que ele anda sempre a reler – e os “desconhecidos” pareceu-me serem o Enrique Vila-Matas – soube, depois, que ficou cliente – e um livrito de Severiano Viramillo, “deste não sei rigorosamente nada”, disse como a desculpar-se. “Nem eu!”, respondi-lhe. E era verdade.

Foi o exemplo dele, Venâncio, que me levou à prática da errância nas bibliotecas. Em traços muito gerais, é assim: pode-se entrar por ali adentro, sem ir à procura de nada, em concreto, como quem vai só para fazer alguma coisa enquanto se espera pela chegada de alguém, só para passar tempo; escolhendo uma secção de estantes (ao acaso, ou conforme a inspiração do momento – as estantes têm, normalmente, uma indicação do tema de que tratam os livros aí colocados: Filosofia, Política, Literatura, Biografias, por exemplo; depois, percorra-se as estantes, uma por uma, sem uma ordem obrigatória, perfeitamente ao acaso, inclinando a cabeça ora ao lado esquerdo, ora ao lado direito, para ir lendo os títulos das obras, tirando esta, para lhe espreitar a contracapa e depois o índice, porventura lendo uma ou outra página, ao acaso, ali de pé, suportando o peso do corpo ora num pé, ora no outro; depois, arrumar o livro no mesmo sítio e continuar a andar, percorrendo as prateleiras de cada estante, se for caso saltando uma ou outra, para deixar pé para a próxima visita.

É mais ou menos como fazemos ao visitar uma cidade: toma-se um ponto de referência – a rue de Rome, o Rijksmuseum, a Grand Central Station ou o Jardim de São Pedro de Alcântara, conforme o caso – e parte-se à descoberta. Sem um plano, sem horas marcadas, ao acaso, sem um destino definido, sendo que o importante não é chegar, mas a viagem em si mesma.

Foi por este processo que o William Saroyan, o Manuel de Lima ou o Paul Bowles passaram para o meu património, ou que decidi passar ao lado de obras e autores “obrigatórios”, sem os pôr num index, fiel à sabedoria do “nunca digas nunca”; foi também assim que um certo “intelectual” – detestável – cá da terra se me revelou um poeta muito a meu gosto, ou que passei a apreciar a obra de um tal autor de ficção publicamente identificado com gente que tenho o prazer de desconhecer.

Nas condições do exercício de tal mester, é igualmente possível que o mesmo livro venha mais do que uma vez cá a casa. De propósito, umas vezes, mas quase sempre por acaso. Foi assim que Luís Amorim de Sousa voltou cá a casa. Depois da mas recente incursão pela biblioteca do Município, logo nas primeiras páginas da leitura da Crónica dos Dias Tesos, tive a sensação de déjà lu; à medida que fui lendo, fiquei com a certeza. Apesar de ser uma reprise, foram mais duas horas de prazer da leitura que acrescentei ao meu inventário; sem ser um absolut, a dita Crónica tem dignidade que baste, a escrita é escorreita e o ritmo interessante, ao ponto de me deixar vontade de reincidir na prosa do homem (servida pela Assírio&Alvim), logo que a oportunidade se depare.

Louvor, pois, ao livre acesso nas bibliotecas, e uma homenagem ao Venâncio, que por estas artes exercita os seus dotes de caçador.



Venâncio – Do Latim, caçador.