sábado, 13 de março de 2010

O buraco de Zenão Lopes


Era o guarda-mor dos Arquivos da Universidade, o mesmo cargo que nos Arquivos Nacionais tivera, séculos antes, um aparentado seu, de nome Fernão Lopes (lembram-se?). Foi na cidade de C., já há uns anitos.

Pêlo preto, bigodes impressionantes e orelhas espetadas, Zenão era um seguro de vida para aquela documentação toda. Coisas do tempo dos afonsinos e seus descendentes, de valor, cobiçadas por todo o tipo de bicharada (peixes de prata, mil-patas roedores de papel, ratos e ratazanas, e, por outras razões, insuspeitos e distintos investigadores da nossa praça). Andou por lá muitos anos, mas, pelos vistos, não os suficientes para o fazerem doutor; mas aprendeu que se fartou - a importância de certos papéis, a paciência de quem anda ao papel velho, os mil esquemas dos bichos para iludir um guardião, a arte do faz-de-conta-que-não-se-passa-nada, e até as vinte e duas maneiras de integrar no património pessoal um manuscrito que é propriedade pública.

Consta que se empanturrou mais de bichos que de literatura e história, mas é verdade que estava ali uma verdadeira alma de arquivista. Até um dia - nunca mais lhe puseram a vista em cima.

Sobre as razões do sumiço do guardião, disse-se muita coisa, sobretudo parvoíces - que ele se aburguesara, deixando-se adoptar por uma bruxa da região (que todas as bruxas, como se sabe, têm o seu gato preto) ou que tinha entrado para uma casa, onde o adoravam pela sorte, em dinheiro e não só, que tinha trazido à família (gato preto em casa é sorte garantida, dizem), ou que mudara de cidade para se dedicar aos estudos de genealogia. Falou-se também na história do buraco - "num país decente, desabafava um antigo chefe-arquivista, "se viesse a saber-se como a bicharada do papel, cá no Arquivo, se tem banqueteado desde então, seria o fim da carreira burocrático-administrativa de um 'Senhor Fulano de Tal', um malandreco a caminho de ser ministro".

A porta do arquivo tinha um buraco, em baixo, como a porta da casa da minha avó Maria do Rosário e quase todas as de lá da terra. Era a porta por onde entrava e saía o gato-arquivista, a sua "janela" de comunicação com o mundo. Mandar tapar o buraco, do lado de fora, foi, porventura, a primeira grande obra do futuro ministro, recém-nomeado director do Arquivo da Universidade. Esteve mais de oito dias sem poder sair, o nosso Zenão.

Foi depois disso que nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima; mas, para mim, o que o levou àquilo, não foi o buraco. Foram os ratos.

Já tinha começado um tempo antes, a invasão dos ratos. Primeiro, quando começou a ver aquilo, um ratito agora e outro mais logo, Zenão Lopes limitou-se a ficar indiferente, como se não fosse nada; depois, vieram muitos, muitos mais. De tal forma que até os mais empedernidos e gastos investigadores da "casa" traziam o seu - uma verdadeira praga.

E ele começou a sentir que os tempos já eram outros. Mais por amor próprio, que por instinto de sobrevivência, resolveu zarpar dali - não fosse o futuro ministro mandá-lo substituir por um gato electrónico. "Safa!"

domingo, 7 de março de 2010

A missa breve que não foi

Tal como acontece com as sopas, há missas e missas. Falemos das breves (em latim, missa brevis), que suprimem algumas partes menos (digamos assim) interessantes, restringindo-se por exemplo ao Kyrie, ao Credo, ao Sanctus e ao Agnus Dei.

Algumas obras primas desta espécie dão fama a uns tantos personagens – João Sebastião Bach, W.A. Mozart, Benjamin Britten ou Vytautas Miškinis, um rapaz do meu ano –, uma lista apesar de tudo bastante restrita, onde poderia constar pelo menos mais um nome, o do padre Tomaz da Conceição Ramalho. Se a sua excelentíssima afilhada tivesse sabido ficar calada.

Foi no Verão de 68. Salazar já tinha caído da cadeira, mas o país ainda não sabia. As férias grandes corriam mansas e plenas de tédio; como quase todos os da sua idade, o infante arrastava um enorme cansaço de não fazer nada, as semanas passando sem história, nem memória. De obrigações, apenas a de ir à missa todos os dias, um sacrifício imposto pela comunidade aldeã ao futuro padre que não haveria de ser.

Na igreja da terra, o ritual da missa de semana, igual à de domingo, apenas sem a homilia secante. A assistência também era diferente, umas oito a dez mulheres, se tanto. Oficiante, o padre Tomaz, acusando o desgaste dos seus mais de oitenta anos, tendo a ajudá-lo nos actos um rapazinho pouco seguro de vir a fazer carreira trajado de batina e outra paramentaria sacra. Como sempre, naquela manhã, o padre Tomaz cumpria a função com a exactidão de funcionário. Com mais de sessenta anos de ofício, dizia a missa em português com a mesma desenvoltura com que o fizera, tantos anos, em latim.

Tudo normal, sem nada a assinalar. Até àquele momento.

Cumprido o Confiteor (“Confesso a Deus todo-poderoso e a vós irmãos, que pequei …”, vocês lembram-se), o padre Tomaz lançou, resoluto, o Pai Nosso, saltando por cima do Gloria e das entediantes leituras da Epístola e do Evangelho. O infante sentiu um ligeiro sobressalto, mas deixou andar, como se tudo aquilo fosse normal – que, em verdade, em verdade vos digo, aquele pequeno salto do oficiante abreviava a função em 60% do tempo, um quarto-de-hora bem contado. E todos sabemos quão importantes são quinze minutos na vida de um adolescente.

Hesitante no princípio, a assembleia seguiu o padre Tomaz no Pai Nosso. Como se quisesse levá-lo à glória do clube restrito das missas breves. Onde agora estaria, de pleno direito, em tão boa companhia, ad aeternum.

Mas, não foi assim – dali da frente, sem sair do lugar, alto e bom som, a menina Maria de Jesus ordenou: “Oh, padrinho, agora não é o Pai Nosso, é o Gloria”. Todas as mulheres se calaram e o padre também. Segura de si – não se sabendo se convicta ou não do mal que acabava de fazer ao padrinho-padre – a Menina Maria de Jesus do senhor vigário (que era assim que a ela se referia toda a gente da terra) lançou, ela própria, o “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa-vontade…", seguida alegremente pelo coro das mulheres e depois pelo próprio padre.

Foi desta forma inglória que Tomaz ficou às portas da imortalidade. Ou porque “Deus escreve direito por linhas tortas” ou por outra razão que me escapa, nunca mais teve outra oportunidade.