domingo, 7 de março de 2010

A missa breve que não foi

Tal como acontece com as sopas, há missas e missas. Falemos das breves (em latim, missa brevis), que suprimem algumas partes menos (digamos assim) interessantes, restringindo-se por exemplo ao Kyrie, ao Credo, ao Sanctus e ao Agnus Dei.

Algumas obras primas desta espécie dão fama a uns tantos personagens – João Sebastião Bach, W.A. Mozart, Benjamin Britten ou Vytautas Miškinis, um rapaz do meu ano –, uma lista apesar de tudo bastante restrita, onde poderia constar pelo menos mais um nome, o do padre Tomaz da Conceição Ramalho. Se a sua excelentíssima afilhada tivesse sabido ficar calada.

Foi no Verão de 68. Salazar já tinha caído da cadeira, mas o país ainda não sabia. As férias grandes corriam mansas e plenas de tédio; como quase todos os da sua idade, o infante arrastava um enorme cansaço de não fazer nada, as semanas passando sem história, nem memória. De obrigações, apenas a de ir à missa todos os dias, um sacrifício imposto pela comunidade aldeã ao futuro padre que não haveria de ser.

Na igreja da terra, o ritual da missa de semana, igual à de domingo, apenas sem a homilia secante. A assistência também era diferente, umas oito a dez mulheres, se tanto. Oficiante, o padre Tomaz, acusando o desgaste dos seus mais de oitenta anos, tendo a ajudá-lo nos actos um rapazinho pouco seguro de vir a fazer carreira trajado de batina e outra paramentaria sacra. Como sempre, naquela manhã, o padre Tomaz cumpria a função com a exactidão de funcionário. Com mais de sessenta anos de ofício, dizia a missa em português com a mesma desenvoltura com que o fizera, tantos anos, em latim.

Tudo normal, sem nada a assinalar. Até àquele momento.

Cumprido o Confiteor (“Confesso a Deus todo-poderoso e a vós irmãos, que pequei …”, vocês lembram-se), o padre Tomaz lançou, resoluto, o Pai Nosso, saltando por cima do Gloria e das entediantes leituras da Epístola e do Evangelho. O infante sentiu um ligeiro sobressalto, mas deixou andar, como se tudo aquilo fosse normal – que, em verdade, em verdade vos digo, aquele pequeno salto do oficiante abreviava a função em 60% do tempo, um quarto-de-hora bem contado. E todos sabemos quão importantes são quinze minutos na vida de um adolescente.

Hesitante no princípio, a assembleia seguiu o padre Tomaz no Pai Nosso. Como se quisesse levá-lo à glória do clube restrito das missas breves. Onde agora estaria, de pleno direito, em tão boa companhia, ad aeternum.

Mas, não foi assim – dali da frente, sem sair do lugar, alto e bom som, a menina Maria de Jesus ordenou: “Oh, padrinho, agora não é o Pai Nosso, é o Gloria”. Todas as mulheres se calaram e o padre também. Segura de si – não se sabendo se convicta ou não do mal que acabava de fazer ao padrinho-padre – a Menina Maria de Jesus do senhor vigário (que era assim que a ela se referia toda a gente da terra) lançou, ela própria, o “Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa-vontade…", seguida alegremente pelo coro das mulheres e depois pelo próprio padre.

Foi desta forma inglória que Tomaz ficou às portas da imortalidade. Ou porque “Deus escreve direito por linhas tortas” ou por outra razão que me escapa, nunca mais teve outra oportunidade.

Sem comentários:

Enviar um comentário