domingo, 8 de maio de 2016

a marca dos avelares

Há em Lisboa uma pequena biblioteca pública, a de São Lázaro, tida como a mais antiga da outrora capital do império. intitulado Aventuras galantes, que tinha chapado na capa o nome do autor de Gargântua e Pantagruel. Pensando tratar-se de uma pantagruélica obra, para mim desconhecida, de François Rabelais, um autor de referência do século XV, o livrinho era, afinal, uma colectânea de textos libidinosos, escritos por um antepassado nosso, ali do Barreiro, de sua graça Joaquim Alfredo Gallis.
Martinho, o dos livros, disse-me que as obras literárias de Gallis não vêm no “Antigo Testamento das boas leituras”, que é como quem diz A Escolha de Livros, do padre Zacarias de Oliveira, acrescentando que um exemplar deste lhe foi às mãos altura da “santíssima queda”, apressando-se a traduzir: «o ano de 68, quando o “santinho de Santa Comba”. Foi então que adoptei o Zacarias como guia, sexta edição».
Publicou aquele Joaquim Alfredo mais de uma trintena de livros de conteúdo atrevido, com títulos do tipo Diabruras de Cupido, O marido virgemSensações fortesNoites de Vénus, Lascivas, ou As mártires da liberdade , que se venderam à socapa, na capital e arredores, durante muitos anos, assinando-se o autor como Rabelais, mas também com outros nomes, como Kin-Fóo, Ulisses ou Barão Alfa, reservando o seu nome verdadeiro para escritos sobre matérias com outra dignidade. Nos primórdios do Estado Novo os seus livros ainda davam boas tiragens; depois, praticamente finou-se. «Nos anos 70,», prosseguiu o Martinho, «já ninguém se lembrava dele. Então, a estrela da literatura picante, por assim dizer, era uma obra, e não um autor – por sinal, anónimo – com relevantes serviços prestados na formação sentimental dos rapazes das classes populares.»
Já a abanar, na mão esquerda, um folheto em deplorável estado, o livreiro Martinho atirou-se à erudição.
«Qual marquês de Sade, qual Casanova, e outros como eles, sequer o Harold Robbins, os consagrados! É de produção nacional a obra que alimentou, no tempo do “santo das botas”, a imaginação do rapazio pré-adolescente de aquém e além Tejo, em Portugal. O título, já de si uma promessa, muito embora indeclinável em família, era A marca dos Avelares.» Exactamente o folheto meio a desfazer-se que o livreiro brandia na minha direcção.
A história e o contexto do sucesso da obra são conhecidos, como adiante se explica.
Querendo satisfazer a natural inclinação para os clássicos, nos anos sessenta, o rapaz ou rapariga dirigia-se à biblioteca (havendo tal coisa na paróquia), perguntando pelas obras do Eça de Queirós. A Cidade e as Serras ou A Morte de Jesus? Não senhor, porque esses não eram do programa. Eles procuravam Os Maias e O Primo Bazílio, para, com preocupações de exegese – nem tudo na época era despudor! – pesquisarem os parágrafos mais estimulantes e inspiradores, para degustação em privado, com a adequada demora. Nobre juventude!
Invariavelmente, havia uma senhora, com funções de guarda dos livros da biblioteca, e por extensão, guarda dos costumes, que, no espírito da “ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933”, se encarregava de fazer em fanicos o entusiasmo juvenil, aniquilando com uma só frase a audácia de quem se propunha, pela mão do Eça, entrar no templo da grande literatura. “Esses não são livros para ti”, rezava a sentença; sendo mais diligente – também acontecia – a santa senhora fazia-se pedagoga: “Vê aqui nesta estante, onde estão os livros adequados para a tua idade.” Sendo mansos, como era o caso, saíamos de lá com dois livros para meninos, que haviam de ser devolvidos sem mácula, nem uso, no prazo regulamentar.
Outra vez o Martinho: «A moralzinha do “obedece e saberás mandar” poderia ter matado, desta forma, uma geração inteira de futuros leitores. Mas, não: quando uma porta se fecha, logo outra se abre – querendo espreitar a literatura picante pela porta dos Maias, mas encontrando-a fechada, os rapazes entraram nela pela porta dos Avelares
Tem o seu quê de estéril a discussão do papel que desempenhou A Marca dos Avelares na formação da juventude, os estragos que fez nas muralhas do pudor e das virtudes, os efeitos do vernáculo nos costumes, na imaginação e no desenvolvimento emocional dos frequentadores. Passemos à frente. Dos sobressaltos que essa leitura clandestina provocou em rapazes com fama de inocentes, atormentados pelo medo de serem surpreendidos pela mãe em transes pecaminosos, estamos falados. «Um bálsamo, por assim dizer, um conforto, para o corpo e o espírito, foi o que foi esse folheto estimulante, que andou por aí, de mão em mão, por empréstimo, lido uma e muitas vezes, clandestinamente, antes de a sua devolução ser reclamada pelo legítimo proprietário. Não tinha muito que ler, é um facto, e a linguagem da sensualidade era desbragada, crua até doer, com a particularidade de os termos obscenos serem grafados em maiúsculas. Nesses particulares não havia outro que se lhe igualasse – nem o nosso Rabelais, nem mesmo A Torre de Babel, ou A porra de Soriano, um hino em verso com que Guerra Junqueiro celebrou a virilidade de Pedro Soriano, condenado em finais de Oitocentos por facínora, na justiça e na opinião pública, e degredado.
Marca dos Avelares, em papel de má qualidade mimeografado, com um agrafe enferrujado a juntar as folhas, circulou subterrâneo, entre amigos e conhecidos, sem constar nas listas da Censura, nem – que eu saiba – nos registos das apreensões policiais. Tal como os escritos do nosso Rabelais, também não constava na “bíblia” do padre Zacarias. Que brindava Os Maias, do Eça, com três estrelas, a significar “reservado a adultos com maturidade nervosa e conhecimentos dos problemas da vida, exigindo sólida formação religiosa, moral e cultural”, dando O Primo Bazílio como “livro proibido pelas autoridades religiosas”. Se frequentou a obra de Gallis e A Marca os Avelares, sua reverência calou-se e deles não deixou referência no livrinho das boas leituras. Por pudor, ou porventura por não atinar com a classificação que lhes havia de atribuir.
«Fosse como fosse», acrescentou o Martinho, «o livro do padre Zacarias, tiro-lhe o chapéu por isso, foi para muita gente, eu incluído, um valioso conselheiro. Por ele elaborei a minha lista do que devia ser lido – que era, simplesmente, A Escolha de Livros ao contrário: no topo da lista, os que ele declara proibidos tornaram-se as leituras prioritárias; a seguir, de leitura obrigatória, os que ele classifica com três estrelas, carregados de reservas. Já adulto, apesar de tudo, fui incluindo na minha ementa algumas obras que o jesuíta, pelo seu critério de valor cultural e religioso, considerou boas leituras. Foi assim», concluiu Martinho, «que se formou o leitor e nasceu o livreiro.»
Como o Martinho, outros fizeram o mesmo.
Um relevante serviço, prestou à cultura o livrinho do padre Zacarias de Oliveira. Não era, afinal, o que ele queria?

Sebastião Baldaque
notas
1. Sobre Joaquim Alfredo Gallis (1859-1910) veja-se “Rabelais», isto é, Alfredo Gallis, o pornógrafo”, de António Ventura, que serve de posfácio ao livro Aventuras galantes (Ed. Cavalo de Ferro, 2014).
2. O juramento imposto aos funcionários públicos, a partir de 1936 (Decreto-Lei n.º 27.003, de 14 de Setembro de 1936) era do seguinte teor: «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.»

3. O padre Zacarias de Oliveira usou uma classificação, muito pessoal, do valor cultural das obras que referencia, identificando os leitores a quem se aconselhava (ou reservava) a sua leitura. De forma simplificada, as boas leituras, por escalões etários – “para crianças”; “para adolescentes”, “para rapazes dos 15 aos 18 anos”, “para raparigas dos 15 aos 18 anos”, e “leituras para todos, com mais de 18 anos”; depois, uma categoria de livros para adultos, a ler com precaução, com a condição de “maturidade e sólida formação cultural, moral e religiosa”. Os desaconselhados distribuem-se por vários escalões, de brando a severo, culminando em “N-Livros sem valor cultural ou literário e com ideias ou situações condenáveis”, no patamar dos proibidos, os códigos DC e I, respectivamente “Livros atingidos pela doutrina geral do cânon 139 do Código de Direito Canónico” e”Livros incluídos expressamente no Índice” (o velho Index Librorum Proibitorum – Índice dos Livros Proibidos, criado em 1559, com a aprovação do papa Paulo IV, sucessivamente actualizado, cuja última edição data de 1948; o papa Paulo VI aboliu-o em 1966. Na edição citada, mantêm a classificação I, por exemplo, toda a obras de Zola, Stendhal, Balzac e Sartre,  ou Madame Bovary, de Flaubert). Para uma informação mais completa, consultar o original – A escolha de livros, nova edição, Casa da Boa Imprensa, no Porto, 1966.

quarta-feira, 20 de abril de 2016


no dia mundial do livro
 
LER É MAÇADA

Já conhecia ambas, a primeira, de ter ouvido falar; a segunda, de uma visita anterior. São sítios onde se vai aos livros, para ver e comprar. Como eu fiz. O Miguel Ferreira levou-me lá, a Hay-on-Wye, num sábado de manhã; a ida a Óbidos, num fim-de-semana, este Inverno, foi prenda da namorada.

Hay-on-Wye (na língua da terra o nome da localidade é muito mais complicado, mas aqui não vale a pena entrar em pormenores) é na fronteira entre o País de Gales e a Inglaterra (Maria Filomena Mónica, que também por lá andou, reincidindo, dá testemunho interessante sobre essa “terra dos livros” no recente A minha Europa, ed. A Esfera dos Livros, 2015).

A vontade de empreender a viagem começara numa anterior estada na capital do Reino Unido, que incluiu deambulações pelos alfarrabistas de Charing Cross Road e a frequência de uma feira de profissionais livreiros na cave de um hotel, na Russel Square, ao lado do Museu Britânico. Ali comprei uma biografia de Dom João de Castro, em língua portuguesa, escrita por Jacinto Freire de Andrade, uma bonita edição in octavo da Typographia Rolandiana, 1786. Nunca tinha pago um valor tão alto por um livro, 75 libras, e durante algum tempo duvidei que tivesse feito uma boa compra; percebi que tinha feito bem quando li, bastante mais tarde Rubens Barbosa de Moraes: «nunca se arrependa por não ter comprado…». Enquanto me aliviava daquela verba, o livreiro, compondo um personagem menos vitoriano, foi-me sugerindo que colocasse Hay na agenda: «a cidade dos livros, não conheces? Vem gente de todo o mundo, bibliófilos e curiosos. Must gooo

Estava frio, na ida a Hay-on-Wye, alguma neblina; enquanto por lá andámos, uma cacimba desagradável estabilizou-nos a temperatura corporal em níveis para o baixo. Um tempo de excepção foi o que tivemos – bom tempo, quero dizer, que o mais comum, lá, é chuva a sério e mais frio. Os locais pareceram-me deslocados para tais geografias: nós perfeitamente ambientados, roupinha quente, um impermeável, eles de roupa ligeira, muitos em t-shirt de meia manga. Com aquelas temperaturas, em tais preparos?! Duvidei que cheguem a velhos – ou não tem nada a ver?

Quem colocou Hay-on-Wye no mapa foi um senhor, pelos vistos voluntarioso, de sua graça Richard Booth, ao declarar a independência de Hay e proclamar-se rei do lugar, nomeando o seu cavalo como primeiro- ministro. Estava-se no “dia das mentiras”, 1 de Abril, em 1977, o ano da fundação do reino dos livros. A ideia de base parece ter sido a criação, a nível local, de uma indústria de turismo centrada no comércio do livro, que Sua Majestade projectava como remédio para a continuada decadência da localidade, atolada na inércia, e sem motores de desenvolvimento económico. O próprio rei Ricardo Coração de Livro (Richard Booth) abriu a sua primeira livraria em 1961, ainda lá está, em Hay. O livro em segunda mão é a alma de Hay-on-Wye, numa filosofia de que todo o livro é valioso e para cada livro existe um cliente.

Ao todo, em Hay-on-Wye, são uns 25 pequenos negócios de venda de livros, a que se juntaram mais recentemente lojas de outros tipos de artigos; uma velha fábrica, uma capela e mesmo o castelo são locais onde se vendem alfarrábios e outros manuseados, vulgaridades e raridades, a bons preços. Há-as especializadas (infantil/juvenil, viagens, comics, crime e mistério, etc.) e as generalistas; e também vendas ao ar livre, como vem nas fotografias do lugar. De todas, preferi a Addyman Annexe e a (não podia ser outra) Richard Booth, que se ufana de ser a maior loja, em todo o mundo, de livros em segunda mão. Trouxe de lá um Humours of History, verdadeiro manual de interpretação humorística de 160 episódios da História de Inglaterra – a colheita possível, que nas primeiras visitas, se me deslumbro, a compra me é sempre penosa, pelo muito que tenho de rejeitar. De todo o modo, um dia de papinho cheio.

A Óbidos era uso ir-se pela ginja, o passeio na muralha, a paisagem envolvente e para lhe percorrer as ruas; os mais afortunados ficavam de um dia para o outro. Há uns anos, conheço eu quem fosse lá ao Festival do Chocolate, passando meio dia a tentar estacionar, para sete minutos de degustação do santo cacau tratado com competência e imaginação – a quê mais podia aspirar um justo?

O homem dos livros em Óbidos foi – ainda é – um senhor chamado José Pinho. Tinha fundado a Ler Devagar, um espaço livreiro que se dá a frequentar em Alcântara, numas antigas instalações industriais, que agora levam o nome de LX Factory. Em Óbidos, o projecto (já completo?) é de 12 livrarias, incluindo duas infantis. Querendo, pode-se conferir a filosofia do conceito numa entrevista de Pinho, na revista Ler, de Setembro de 2013, e a sua aplicação, in loco, em Óbidos.

Desfrutei, especialmente, de três livrarias de Óbidos: primeira, a Santiago, instalada numa antiga igreja, desactivada, generalista, cheia de luz e de livros, um prodígio de design interior ao serviço da nova função, operada (a livraria de Óbidos) pela editora/livraria Letra Livre (conhecem? ali na calçada do Combro, e agora com um espaço aqui mesmo ao lado, na rua da Guiné); segunda, a Livraria alfarrabista generalista da Adega, no Espaço Ó, à entrada da localidade, e, terceira, a Livraria do Mercado, aquela onde mais me demorei e enfeirei com critério, Urbano, Régio, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, coisas velhas, um de cada. Outra surpresa, da oferta estalajadeira da Vila Literária foi a estadia, pernoita incluída, literalmente no meio de livros – assim é, agora, o antigo convento (concluído, afinal, fora de tempo, em 1830, tempo de secularização, pelo que não chegou a receber religiosas), que virou hotel literário, as paredes forradas de estantes, livros nos espaços de estar, de comer, de dormir. Também vendem livros – foi de lá que a namorada trouxe uma velha edição inglesa de Mulherzinhas, da avó Louisa May Alcott, que a Portugália publicou, há uns anos, referenciando a obra da autora como literatura aconselhada a meninas adolescentes. Para conferir, querendo.

No Dia Mundial do Livro, tem sentido celebrar Pinho e Booth – faça-se! E celebrar Óbidos e Hay-on-Wye – ir lá, podendo. Quanto ao mais, tivesse eu discípulos ou filhos, e valessem as minhas opiniões alguma coisa, eles festejariam este Dia Mundial, concedendo-se um dia de descanso – não lendo, que de leituras, também há que descansar. Para, no dia seguinte, voltar ainda com mais prazer à rotina. A eles, aos livros!

Sebastião Baldaque





 
 
 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O que escreve direito por linhas tortas

Encontrei-a em Paris, tinha eu pouco mais de 20 anos. A expressão do rosto era a mesma, serena como sempre, a pele lisa e imaculada, os mesmos olhos – toda ela sem marcas do longo “séjour parisien”, como se os anos não tivessem passado; o tronco despido, em ligeira torção, indiciava um movimento que lhe fizera escorregar ao longo do corpo, até se deter nos quadris, uma peça de vestuário de nome indefinido que lhe cobria, de forma irrepreensível, todo o hesmisfério sul – púbis, pudenda, pernas e quase integralmente os pés.

Tinha conhecido a senhora de Paris no Tortosendo, oito anos antes, ainda as missas eram ditas em latim, quando o vernáculo começava a invadir a liturgia, a começar pelo canto. E se nós cantávamos!, num êxtase que nos transportava a uma dimensão superior de comunhão com o indefinível (que o canto tem destas virtudes e a inocência dos 12 anos pode mais do que a razão ou a fé na maioridade), um coro de duzentas vozes seguindo o Reis, que todos chamávamos Regina, para distinguir a melhor voz que passou por aquela casa nos anos sessenta.

Ingressado dois anos antes na casa dos padres missionários da terra, vindo de umas berças menos frias, mais a sul, foi então que eu e a senhora de Paris nos começámos a dar, em boa verdade, eu mais do que ela; no princípio, uma coisa inconsequente e sem história, tudo muito calmo e sem sobressaltos dignos do nome; mas depois foi-se insinuando qualquer coisa, até que, um dia, em ofício canónico – cantava-se a “Miraculosa Rainha do Céu, sob o Teu manto tecido de luz...” – senti que ela se intrometia na minha intimidade com a Virgem da imagem posta na parede da capela, do lado da sacristia, onde ainda está. Uma súbita aflição suspendeu-me a projecção da voz, na incerteza de para qual das senhoras iam as minhas invocações de fé. Cheguei a temer uma súbita e prematura perda de vocação – que era o que os estudantes pobres mais receavam; pior, só a certeza de um futuro infeliz sem os imprescindíveis pilares da fé. Se todos temos um anjo da guarda, o meu tinha-me falhado na hora da maior precisão.

Como se sabe, havia na casa uns tantos livros profanos, sendo os de Karl May – “Pelo Curdistão Bravio”, “De Bagdad a Istambul” e “Winnetou”, em 3 volumes – os mais disputados. Àqueles, não obstante, eu sempre preferi dois calhamaços já bastante gastos, de conteúdo vário, por sinal muito pouco disputados pela população local. A obra era um digesto de “cultura geral” bastante ilustrado, em papel demi-couché de qualidade duvidosa, encadernação em inteira de pano cinzento-rato, tratando temas da maior transcendência, com salpicos de menor densidade, orientados todos eles à formação integral do indivíduo – para amostra, no primeiro volume, cito de memória: as formigas cinzentas do Calaári, os heróis esquecidos da Primeira Guerra Mundial, a história admirável das plantas carnívoras, ou como Leonidas foi derrotado nas Termopilas; também falava dos primeiros tempos da aviação, do governo no século de Péricles e da cultura helenística, estes no segundo volume. Um verdadeiro “livro da sabedoria”, brasileiro, editado provavelmente em São Paulo, no ano do centenário da independência.

Entre as duas Guerras, e mesmo uns anos depois, a ilustração dos livros fazia-se a preto e branco, uma técnica que, conjugada com a má qualidade da impressão e do papel, era capaz de transformar notáveis obras de arte em coisas manhosas de baixíssimo escalão. Tal foi o estado e as circunstâncias em que conheci a futura “senhora do Louvre”, que nem ia muito mal a preto e branco, a despeito da inferioridade dos materiais.

Da mesma forma que as vestais que hoje “fazem le trottoir” no 10º "arrondissement" de Paris têm pouco a ver com as de outro tempo, aquela senora que vi, desataviada, em Paris, dez anos depois, não era a mesma para quem tinham ido os mais piedosos “totus tuus” da minha vida. De todo! Ela tinha qualquer coisa de menos – e isso fazia toda a diferença.

Na altura, ainda não tinha sido construida a pirâmide de vidro, em frente do Louvre; tenho ideia de ter entrado do lado do Carrocel, a ala das antiguidades orientais: um curto estágio na fila para a compra dos ingressos e depois o périplo em passo acelerado por escadas, portas, corredores, guarda-vento, mais escadas, uma curta paragem no primeiro patamar, para admirar a Vitória de Samotrácia, que saudei no nosso primeiro encontro ao vivo; depois, mais escadas, mais corredores e salas, passando por matronas, senadores, deusas da caça, atletas, afrodites e outras celebridades várias do portfolio universal, algumas delas – a Vénus de Milo primeiro que todas – minhas conhecidas do in-folio de cultura geral do Seminário do Tortosendo.

Aparte a circunstância de estarem ali todos juntos, para mim era a nudez o que mais distinguia aquele olimpo de notabilidades. Nesse estado (nus, ou pouco menos) teriam parte deles entrado no original do “Livro da Sabedoria” da sala de estudo do meu terceiro ano, como Adão e Eva, antes do pecado; até um dia – aquele em que alguém descobriu, no vademecum duma discutível moralidade, que o nu mais inocente das artes entrava na categoria do menos próprio, do indecente. E foi assim que, empurrado por uma força sobrenatural e submetido a uma vontade de outro mundo, essa boa alma deu um passo para a imortalidade; e pegando no dito livro, a mão guiada por uma subtileza de ordem superior, o virtuoso artista vestiu, com caneta de tinta preta, um após outro, todos os corpos nus que encontrou impressos – nos homens, calções de perna muito decentes; nas senhoras, calção do mesmo modelo e um coletinho a resguardar-lhes o peito.

Deuses e heróis de antes e depois de Cristo ter andado no mundo, gente vulgar e assinalada, faunos, ninfas e graças várias, até umas quantas Virgens a amamentar Jesus – todos ele libertou da nudez, para fazer do tal alfarrábio um livro de virtude para consumo seminarístico. Seis dias durou a pulsão criativa do anónimo iconoclasta, que nesse entretanto não comeu nem disse missa; no sétimo dia, como fez Deus no episódio da criação, contemplou o trabalho feito e descansou na maior beatitude; a seu ver, a obra realizada era a expressão genuína do triunfo do bem sobre o mal.

Um milagre dos verdadeiros, foi o que ele fez, ou a mão de Deus, através dele; e eu, homem de pouca fé, curvo-me à invocação da sua memória – não fora o arrebatamento místico do artista anónimo, a minha Vénus de Milo seria como a dos outros, a fugaz emoção de um momento de passagem numa sala do Louvre. Não, a do “Livro da Sabedoria”, a Vénus de Milo dos meus doze anos, é outra coisa, muito mais do que uma obra de arte com prazo de validade na memória pessoal, muito por causa do curioso atavio com que o profanador sem nome lhe escondeu os seios: conferindo-lhe um certo recato, o coletinho acrescentou à beldade um toque de enigma e sedução, fazendo dela um estimulante desafio à curiosidade e à imaginação de um donzel da minha idade, ao tempo uma granítica vocação religiosa.

Quanto pode, em circunstâncias propícias, um coletinho de alças – desde que virtuoso!

  


A Vénus de Milo de toda a gente






















quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Falta de tempo para ler


“Eu também havia de ler muito, não fosse a falta de tempo e o facto de os livros serem tão caros”. Ernesto J., meu amigo.


Regresso à Biblioteca Municipal, depois de cumprida a penalização de 43 dias, por atraso na entrega dos livros do último abastecimento. Leitura para o fim-de-semana de três dias – escolha criteriosa e por isso demorada, que resultou em quinhentas e tal páginas de prosa distribuídas por quatro ou cinco volumezitos daqueles que ainda se conseguem meter numa pasta de estudante já cheia.


Andei de estante para estante, ao acaso, cultivando a dificuldade da escolha – primeiro, o périplo dos americanos (lembro-me de Roth, Cummings, Cormack e de ter passado, altivo, ao lado de velhas glórias em que costumo reincidir, como o Hemingway e o Saroyan; eu procurava o “Manhattan Transfer”, do John dos Passos), demorando-me depois nos europeus – os russos (está em projecto um retorno em força ao Dostoiewski, depois dos “Contos de São Petersburgo” acabados de ler) e outros que mais, ou autores-refúgio como o Coetzee, o Sarat Marai ou o Chatwin (“Anatomia da Errância”, nunca lido, está na lista dos próximos). As escolhas acabaram por ser um (velhito) Alberto Moravia – “Passeios africanos” (1987), conjunto de notas de reportagem de uma viagem em África, ainda jovem, como jornalista, por terras da Tanzânia, Gabão, Zaire e Zimbabwe –, “A linguagem dos pássaros” (2001), o primeiro de Ana Teresa Pereira que entra cá em casa, ficando em carteira algum mais dos que escreveu, com destaque para um volume de contos, e mais dois autores-refúgio: Paul Bowles (“Muito longe de casa” (1992), com paisagens, cheiros e gente da região do Niger, e Guillermo Cabrera Infante.


“É tudo um jogo de espelhos” (1999), do autor de “Três tristes tigres” (1964) ou “Havana para um infante defunto”(1979), entre outros, revelou-se, afinal, um livro de contos já lido, dando a este Pepe (que é uma forma de dizer José, em espanhol) a oportunidade de revisitar três histórias, daquelas de guardar: a primeira, de José Castro Espinoza, o tio Pepe de “O meu personagem inolvidável”, notável pela arte de ler jornais, pela sua boa voz, ouvido musical e o amor desmedido pela ópera, o seu interesse pelo desporto, a obsessão pela cultura e o fanatismo pela higiene corporal; oficial de detecção de fraudes, foi um fanático germanófilo e um incondicional da revolução cubana, tendo morrido em casa, de um problema cardíaco, um tempo depois de ter sido vingada a sua morte às mãos de uns índios mexicanos ainda fiéis a ritos canibais dos antigos maias; a segunda, tão verdadeira quanto pode ser uma história contada por uma sogra chamada Carmen, em cumprimento de uma promessa à Virgem do mesmo nome, chama-se “A voz da tartaruga”, na realidade uma caguama, cujo sexo – quase de mulher – deu fama a um rapaz da aldeia; a terceira e última trata de duas bengalas, ainda que o título só tenha uma: é a “História de uma bengala e algumas observações de Mrs. Campbell”, contada primeiro pelo senhor Campbell, escritor profissional, e corrigida, depois, pela sua senhora, Mrs. Campbell. Recomenda-se.


Escrevo na manhã do terceiro dia, que vou dedicar ao volume que resta por ler, o do Moravia. Se não se revelar de boa colheita, volto ao “Dublinesca”, do Enrique Vila-Matas, trazido de Bilbao este mês e já encetado.


terça-feira, 19 de julho de 2011

Aos inocentes patifes que puseram o colhão do Almeida na literatura universal


Para o Abel Martins

Conheci o Almeida no meu primeiro dia de vida profissional, sentado numa cadeira de pau, no seu posto de trabalho, com aquele vulto entre as pernas, salvo seja. “Já viste o colhão do Almeida?”, perguntou um dos rapazes a meio da tarde desse mesmo dia e eu disse que sim, com um certo acanhamento, ouvindo-se então um coro alarve de palavras fora da etiqueta, com muitos gestos a condizer, que me fez sentir bem naquele meio e membro do grupo de corpo inteiro.


O senhor Almeida era um homem de monossílabos e linguagem atabalhoada, em que aprendi a distinguir as palavras exactas a colocar nas requisições, como resma de papel almaço, “escamartilhão”, tinta para almofada de carimbo ou pasta forrada a papel diabo, com ferragem; na nossa ingenuidade dos dezasseis ou dezassete anos, dávamos-lhe a idade da sé de Lisboa, um tempo aliás suficiente para o seu particular adereço adquirir a envergadura conhecida por todos, granjeando ao seu distinto possuidor os nossos maiores respeitos. Era de admirar que só tivesse uma filha, e não se sabe quanto orgulho tinha no seu material.


Também eu levei um ou outro, dos que entraram depois na empresa, a ver aquela digníssima peça; Almeida arreliava-se com isso, e, nesses momentos, os seus monossílabos transformavam-se em palavrões medonhos em forma de balas arremessadas por um titã justiceiro, mas na verdade muito injustos para com os inocentes rapazes.


Com o passar dos anos, mais avinagrado ia ficando o Almeida. Um dia, com o prazo de validade há muito ultrapassado, disse “até amanhã”, como de costume, e não voltou ao Economato, passando à condição de reformado. Foi-se o homem com o seu adereço, mas deixou deste a memória, que nós tomámos como missão preservar na sua autenticidade e espalhar por onde pudéssemos. Quantas conversas entre nós, sobre o colhão do Almeida, e quantas vezes a história foi contada a terceiros, que a contaram a outros, que a contaram … sabe-se lá onde e a mais quem – do velho, do novo, deste e, calhando, até do outro mundo.


Até que, um dia, de mansinho, o tivemos de volta, em forma e na maior dignidade, aos ombros de Gabriel García Márquez, em “O Amor nos Tempos de Cólera”. Sai prosa:


“À água das cisternas foi atribuída durante muito tempo e com muita honra a hérnia do escroto, que tantos homens da cidade suportavam não só sem pudor como ainda com uma certa insolência patriótica. Quando Juvenal Urbino ia à escola primária não conseguia evitar um arrepio de horror ao ver os herniados sentados à porta das suas casas nas tardes de calor a abanarem o testículo enorme como se fosse uma criança que lhes tivesse adormecido entre as pernas. Dizia-se que a hérnia emitia um pio de pássaro lúgubre nas noites de tempestade e que se retorcia com uma dor insuportável quando queimavam por perto uma pena de galináceo, mas ninguém se queixava daqueles percalços, porque uma hérnia grande e bem conservada ostentava-se como um apanágio de homem.”


Mesmo quem nunca tivesse conhecido o senhor Almeida seria capaz de reconhecer neste excerto o colhão do velho ecónomo, que nós celebrámos durante tantos anos, e cuja fama conseguimos, sem desfalecimentos, levar tão longe e com tanto sucesso, ao ponto de torná-lo matéria-prima da melhor literatura.


Num mundo mais justo, Almeida haveria de descer à Terra, para agradecer aos inocentes patifes que, por muito falarem no colossal adereço, fizeram do seu titular personagem de romance.

Crónica de um pedaço de asno confirmado e de duas histórias por contar







“Não vem agora a propósito falar daquela noite que Fulano de Tal passou na velha Torre do Tombo. Ou a do colhão do Almeida, salvo seja! Prometo que um dia conto.”

Começava assim, sem mais nem menos, a última carta do Migo, que aqui dou por recebida e, pelo presente escrito, formalmente respondida. Para que conste. E dizia mais:

“Nem hás-de acreditar, mas até tem piada: agora durmo no meio dos livros, estás a perceber, rodeado de livros por todos os lados! O que tem o seu quê de problemático: numa abundância destas, para não me dispersar,sou forçado a uma disciplina de regulamento, focando-me no livro que tenho entre mãos, como se fosse o único na casa. Mas, sem deixar de praticar em vários, se for caso disso – que é mais ou menos o costume. Segue a ementa desta quinzena.”

Respiro, enquanto ele muda de linha e de parágrafo.

“Como livro de cabeceira, o quarto de crónicas, do Lobo Antunes (antes, hei-de ter lido dois dele, dessa especialidade), duas crónicas por dia, não mais que duas – uma à sossega, tipo chazinho para relaxar, antes de dormir, e outra ao ‘mata-bicho’, ainda na caminha, logo que se faz de dia. Numa das últimas que li, o grande Borges, em certo momento, diz à mulata ‘de madeixas desfrisadas e nádegas de alcatruz’ ‘sua jeitosona’, ‘ela a fender o alcatrão numa majestade de petroleiro a sair da barra’; a próxima, para logo à noite é sobre as missas em Nelas. Sabes que o homem faz traduções de latim para manter os neurónios oleados? É o que ele diz, como se a escrita não fosse exercício mental suficiente.”

Mais uma pausa, ponto e parágrafo.

“O livro de sair é ‘O Amor nos Tempos de Cólera’, do velho Gabo, numa ediçãoda Dom Quixote, com alguns erros pelo meio, mas bom!, bom!, bom! Se o céu se ganhasse com escrever bem, sendo Deus imensamente justo e bom, como é suposto, a Gabriel Garcia Márquez bastaria este livro para ingressar na eternidade – ainda que ele fosse o maior dos pecadores. Que história bem contada, que escrita magistral, que prazer ler uma prosa assim! De tal maneira que uma pessoa está a ler e até parece que está dentro do livro, não como personagem, mas como se o livro tivesse sido escrito por mim. Estranho, não é, Tê? O Cardoso Pires – meu oráculo nestas coisas de escritas e de livros – classificou-o como o melhor romance jamais escrito. Anda comigo todo o dia e uso-o quando posso – no intervalo entre a sopa e o bacalhau do almoço, na travessia de barco para Cacilhas ou enquanto uma reunião não começa. Um prazer imenso, que é o que deve ser a leitura, no antes e no depois de um juramento de fidelidade eterna e de amor para sempre, repetido ao fim de um interregno de cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias depois, na primeira noite de viúva daquela que fora a prestimosa esposa do doutor Juvenal Urbino, o médico que logo no princípio do livro vemos a perder a missa do domingo de Pentecostes, em tarefas de validação da morte de um tal que se matara com cianeto de ouro, num quarto com cheiro a amêndoas amargas, precisamente no dia em que o (também) doutor Lácides Olivella celebrava, com um almoço de gala, as suas bodas de prata profissionais. Vou a pouco mais de meio.

Este, como disse, só o leio fora de casa, nos dias de trabalho – faz parte da farda.”

Tanta explicação, meu Deus! Vá lá, digo eu, fecha o assunto, meu amigo – que, se não me engano, ainda há mais livros.

“Agora vem o mais curioso – e eu sei que tu achas piada a isto: sem nenhum objectivo em especial, peguei no “Viver para Contá-la”, um escrito autobiográfico do próprio Garcia Márquez. Umas centenas de páginas com histórias da vida do homem, desde a infância à idade adulta, com uma leveza, uma graça, uma qualidade de escrita que só lendo. Com a particularidade de aí aparecerem personagens e episódios (a mulher que come terra, ou o velhote que fabrica peixinhos de ouro, ou a sensação da mão que se pôs num bloco de gelo) que encontramos, um tanto mudados, na ficção do autor, designadamente no ‘Cem anos de Solidão’ ou – como vou descobrindo por estes dias – em ‘O Amor nos Tempos de Cólera’. Este, leio-o na casa de banho lá de casa, invariavelmente, antes (à noite) e depois (de manhã) das crónicas do doutor Antunes.“

Eu não dizia? Precisamente. Para continuar assim:

“Lembras-te do jogo que a D. Natália punha os inocentes da Primária a fazer em “Geografia de Portugal”, com o Thomaz e o Salazar pendurados na parede em frente? Aquele assim: ‘um pedaço de terra, rodeado de água por todos os lados, é uma ilha; um pedaço de terra rodeado de água por todos os lados, menos por um, é um cabo; um burro rodeado de cabos por todos os lados é um sargento; um pedaço de água, rodeado de terra por todos os lados, é um lago; um homem rodeado de terra por todos os lados é um morto; um pedaço de água, rodeado de terra por todos os lados, menos por um, é um istmo.’ Adivinhasse eu que haveria de dormir nestes preparos, havia de ter-lhe perguntado como se designa um homem que dorme rodeado de livros.

Que há-de ter um nome, não é, Tê?”

Continua a ser o que era – no caso, um pedaço de asno, quase gritei, farto de conversa.

Agora já mais calmo: continua a escrever, Migo, e manda lá aquelas histórias de que falas. O teu amigo merece!

domingo, 1 de maio de 2011

Ainda na pista de Javier Mariño - A paixão das primeiras edições assinadas (parte 2)

Confessar que voltei ao bar da travessa da Água de Flor não será propriamente uma vergonha; ainda assim, saibam que foi num dia de grande abatimento físico e moral que o Agostinho Frade me arrastou (é uma forma de dizer) para aquele antro, uma quinta-feira. Eu não estava no meu juízo – um homem de certa compostura, vestido como se fosse a ver Deus, acompanhado por um tipo com um ar desgraçado (posto que sem cheiro, apesar dos quatro dias já passados sobre a barrela semanal, nos Banhos de São Paulo, ao Cais do Sodré), para o baixote e sobremaneira peludo, envergando conjunto de camisa grená-laranja e calça preta, mocassins cremes e meias também pretas. Um mimo, pese embora a ausência de barba, ou bigode.

No Lindoso, não havia onde pôr um pé e a animação era grande. Sentámo-nos perto da entrada, bem apertados, por falta de espaço, e ele encomendou bebidas – uma vez, outra e não sei quantas vezes mais, sempre ele; a mulher que trazia as bebidas, com um vestido azul a denunciar-lhe a barriga indecente e o excesso de carnes, não tinha um minuto de descanso, entre actos de serviço “sempre-a-aviar” e respostas aos desafios e apreciações que lhe chegavam de todos os lados – tudo no maior respeito, pois sendo a casa de gente séria, ali não se admitem faltas de respeito a quem trabalha. Um pouco aturdido com o ambiente, bastante quente e suado para o meu gosto, praticamente sem espaço para me mexer, que me deixei ir na conversa, quando se desatou a língua ao meu companheiro. “Não sei já te falei dela”, começou ele, em tom meio íntimo, demasiado próximo do meu ouvido, referindo-se à mulher que todas as quintas-feiras à noite fazia encher aquele bar da travessa de Agua de Flor, ao Bairro Alto em Lisboa. Tinha sido por ela que o ex-futuro padre me levara ali, e eu convencido que ia por causa do Guedes e do “meu” livro de don Gonzalo.


Tinha o nome de Rosa e uma cara que era só olhos – grandes, provavelmente cinzentos, capazes de cegar um pobre com fome. Movia-se com grande à-vontade entre todos aqueles homens, na cara um ar místico digno de Santa Juana de la Cruz. Não parecia ser mulher daquele tipo de ambientes; de igreja, sim, sem dúvida.

Extraordinária a altivez daquela mulher, movendo-se entre as mesas apinhadas de homens, todos a quererem ser servidos por ela, batendo-se por uma palavra sua ou por um olhar, comendo-a com os olhos, ela tão inacessível quanto desejada. Vinha todas as quintas-feiras, depois das onze, quando a casa já estava a rebentar pelas costuras e nessas noites trabalhava-se até muito mais tarde, as bebidas e as mulheres, mesmo as mais velhas e gastas, sempre a saírem.

Frequentava Santa Isabel; sendo nova na comunidade, era estimada por todos; sabia-se que, durante a semana, cumpria um estrito programa de boas obras, visitando os doentes. Fiel ao mandamento de “não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita”, guardava recato sobre essa espécie de penitência, que não deixava de intrigar mentes mais analíticas, antes mesmo de o número de doentes (homens) acamados da paróquia ter aumentado duas vezes, uma torpeza a ser desmascarada no futuro.

Chegou a bichanar-se que ela se deitava com eles, os velhos das casas aonde ia, ou lhes mexia por baixo dos cobertores e até se falava de quanto recebia por cada visita e de coisas que lhe davam e das propostas para lhe porem casa, comentários a que ela respondia encolhendo os ombros, sem dizer nada, cada um ficando no que lhe parecia. Que, em boa verdade, até eu, depois de a ver, tenho a certeza de que, mesmo velho, só um cego não se quereria deitar no mar daqueles olhos, inquestionavelmente verdes para uns, para outros sem dúvida azuis, nem que fosse para neles se perder.

Que nada disso, confessava-me o "padre" Agostinho, à saída do Lindoso naquela quinta-feira: ela ia às casas dos velhos para lhes fazer companhia, se já não podiam sair de casa, a dar-lhes conversa, com a bênção da família chegada, num caso ou noutro a ler-lhes as passagens dos seus romances preferidos ou de algum velho livro de religião, tudo – sempre – na maior decência; se tanto, uma carícia nas costas da mão, descendo do pulso até à ponta dos dedos, ou uns afagos por cima da roupa de quarto aos acamados, mas sempre – ele podia jurá-lo – na maior pureza de actos e pensamentos.

Num excesso de intimidade, foi explícito sobre os seus planos de vida a dois, com ela, no recato de Santa Rosa do Douro, ou do Zêzere, não estou certo; senão, que se havia de matar. Na despedida, perguntou-me pelo Guedes, se sempre o tinha encontrado, para acrescentar com a dignidade e convicção possíveis num bêbado: “Depois de te falar dele, da outra vez, soube cá umas coisas do tipo, que espero sejam mentira; se não, vai ser muito mau para ele. Palavra de Agostinho.”