quinta-feira, 22 de abril de 2010

Prenda de anos


“Vais ter a melhor prenda que alguma vez te dei. Sim, nos anos”.
Largou esta sentença e saiu. Verdade, verdadinha, as coisas entre nós não iam pelo melhor, com aquela parvoeira da Ana sobre as namoradas anteriores. Não liguei à conversa da prenda, como não ligo grande coisa aos aniversários.
Uns dias depois, voltou ao assunto: “Aquele alfarrabista teu amigo é na Rua do Passadiço, não é?” A coisa começava a ser mais interessante, pensei, ao responder-lhe que sim, lembrando-me que devia dar um telefonema ao velho Martinho. “Há um tempão que não o vejo”, acrescentei, sem a certeza de ela me ter ouvido.
Uns dias depois, no escritório, tinha um recado à minha espera. Num cartão de visita, manuscrito: “Tenho lá um molho de cartas, mesmo ao teu gosto. Tenho uma oferta, mas já sabes – tu primeiro. Aparece”. Por baixo, um “M.” mais rococó do que era costume no Martinho. Peguei no telefone e liguei-lhe. “A cliente está mesmo decidida”, atirou ele, em começo de conversa, “sem esforço nenhum, vendia-lhe as cartas por uma quinhentola. Para ti, são trezentos, e tu estás primeiro, meu querido, como sempre! A louraça volta cá à tarde com o dinheiro na mão. Sabes que até parece a tua letra, pá?” Senti um sobressalto. Ainda lhe disse que não podia ser, só para ser minha a última palavra, como se ele, ou eu, ligássemos a essas coisas. Resolvi passar pelo Martinho antes do almoço.
Pelo caminho telefonei à Ana, com um convite sincero, para um chá, “aí pelas cinco”. Falou-me de um compromisso à tarde e que não tinha a certeza de estar despachada a essa hora. Fiquei com a certeza de quem era a “louraça do Martinho”.
Antes das três liguei para a Alfarrábios e Simpatia. “Estou com uma cliente; devolvo-te a chamada dentro de meia hora”, foram as instruções do livreiro-antiquário. Liguei-lhe às quatro. “Diz lá, meu. As cartas? Já as despachei. Como não estavas interessado. Não me digas que…” Conversa de m., a do Martinho. Grande traidor! Nem lhe disse que me dispunha a pagar os tais 300 ou os 500 ou o que me pedissem, não para as ter, mas para que não fosse parar a mãos erradas o maço das cartas que, num namoro de seis meses, eu tinha escrito à Rosalina, a miúda mais leal que alguma vez tive.
Uma imperceptível alteração de tensão convenceu-me de que eu ficara preocupado. As peças do puzzle encaixavam todas e isso não era uma boa notícia. Tempos difíceis, era o que era – o dia do próximo aniversário prometia e eu já começava a antever a cena do rompimento, a apresentação aos pais de uma nova namorada e a sugestão de reprimenda da mãe, que apesar da experiência acumulada, nunca mais ganhava calo: “Quando é que tu assentas, filho? Com esta, já são quantas? E tal, etecétera…”
No dia 15, fui-me deixando ficar na cama, numa expectativa cobarde de que a crise passasse ao lado. De mansinho, a Ana deu início aos rituais de aniversário: o “Parabéns a você”, o beijo da ordem – surpresa! um beijo a sério, daqueles tais – a prenda embrulhada. “Espero que gostes”. E, depois de uma pausa: “Não era bem isto que eu queria, mas aquele teu amigo deu descaminho a umas cartas manuscritas que eu lhe pedi para reservar.” Desembrulhei a prenda e disse-lhe que tinha gostado muito de “O fiel secretário do amor, ou nova collecção de cartas amorosas, tanto em prosa como em verso…”, edição de 1853, da Typographia Simão Ferreira, do Porto. Obrigou-me a jurar que era verdade que a prenda me tinha agradado; e eu jurei.
No escritório, à tarde, entregaram-me um embrulho. Dentro, o espólio completo da minha correspondência amorosa para a leal Rosalina. Ninguém me soube dizer quem tinha feito a entrega. O Martinho ainda hoje jura que não foi ele.