domingo, 27 de março de 2011

O fascínio das primeiras edições assinadas

As mãos pequenas e sapudas, com restos de tinta ou de estuque, que ele ia raspando com a unha do polegar da mão direita, identificavam-no como operário, estucador ou pintor de móveis; não parecia nada o Guedes que eu procurava. O local também não era dos mais óbvios para tratar de livros, que era a razão de eu ali ter vindo, ao número 38 da travessa de Agua de Flor, por coincidência o mesmo bar frequentado pelo Jesus, nos seus primeiros anos de Lisboa.

O nome do estabelecimento estava pregado na parede do lado de fora, num letreiro em muito mau estado, e para entrar afastava-se uma cortina grená que servia de porta nas horas de expediente. A mesma que dera passagem a Esteres, Rosas, Judites e outras profissionais do meio (que tinham feito da casa uma das mais afreguesadas do bairro), ao Paulo de Jesus e à mulher do cabelo preto – dizia-se espanhola e declarava chamar-se Mercedes – que, durante dois a três anos de rédea curta, lhe interditou o acesso a outras mulheres e o trouxe lavadinho, bem comido e a cheirar bem, animando-lhe ainda a boa vida com uma cena semanal de ciúmes, a cobrar-lhe as idas aos Alunos de Apolo, nos sábados, precisamente o dia em que as senhoras do Lindoso Bar tinham mais saída. Até um dia: “Passei o táxi, estás a ver”, disse-me em data incerta, já chefe de família, ali no passeio em frente do Almarjão (mestre livreiro, para que conste); “deixei a vida e entrei na Polícia de Costumes com carta de chamada do meu primo Rui. É verdade: ter uma mulher na praça é melhor do que ser dono de um táxi, mas passa-se muito; e ser uma autoridade é outra coisa, outro respeito. E dá para ter família, entendes?” Eu compreendi e nem sequer estranhei ver o nome dele no jornal, no tempo em que o tribunal de Santa Clara escreveu páginas notáveis na justiça pátria, convertendo torcionários do tempo da outra senhora em escriturários e motoristas, apenas honestos, amantes da ordem e tementes a Deus. Ele foi um desses. Ao que sei, continua a portar-se como um bom cristão e, apesar de uma trombose que teve, é o principal organizador dos encontros anuais do pessoal da Companhia 237, que fez serviço em África, em 63.

“O Pablo e o Guedes chegaram a ver-se lá no bar da Travessa, mas, se lhes perguntares, nenhum conhece o outro”, disse-me o José Frade, que chegou quase a ser padre e foi alferes em Angola, onde conheceu Jesus. “Se não tiver o livro que procuras, o Guedes arranja-o, podes ter a certeza. Mas se queres ter sorte, não fales no meu nome, nem ligues ao aspecto da casa, nem à pinta do homem”, concluiu o meu alferes, a despachar-me.

O padre Frade sabia do meu interesse em primeiras obras assinadas pelos autores; já me tinha referenciado umas tantas e chegara mesmo a oferecer-me, por um valor muito acima das minhas posses, o número de estreia da revista Orpheu, que encontrara numa “casa amiga”, no Porto, assinada pelo Pessoa e pelo Almada Negreiros. Também ele parava no Martinho, onde só mexia, sem comprar nada, para desespero do dono da casa, que se lhe referia, geralmente, em termos pouco elogiosos.

Carlos Martinho, o meu livreiro de confiança, não trabalhava com primeiras obras assinadas; mas sabia de casas onde eu poderia encontrá-las e, a pedido, encaminhava-me para lá. Quando lhe falei no tal Guedes, não reagiu: fiquei com a impressão de que não conhecia tal gente.


Uma certa tarde, depois de passar a cortina grená que tapava a entrada do bar, fiquei no ponto de mira do homem e das duas mulheres, cada um sentado em sua mesa. Chegado àquela hora, eu só podia ir ao engano: os fregueses só começavam a entrar mais tarde, para frequentarem as senhoras, mas a casa deixava vir mais cedo as que quisessem, para estarem ali entretidas na conversa, descansando do trabalho da noite, sem filhos a puxar-lhes pelas saias, nem homens em cima. Nessas horas, aquelas damas meio gastas pelo muito uso não falavam de trabalho e todas usavam os nomes de baptismo, num ambiente de paz doméstica, em que não se estranharia ver uma delas, com um pano de linho no colo, semeando nele passarinhos azuis ou flores encarnadas e verdes. Guedes nunca parava ali a outras horas. Mesmo de manhã, antes do trabalho, e depois, o seu poiso era na rua da Barroca, no Ferra-Mulas, com o cordial da ordem ao mata-bicho e uma zurrapa meio doce a fazer boca para a refeição, antes da uma. Isto, nos dias de semana, pois nos domingos (“dia de banho, de ceroulas lavadas e de cuidar da canalização”, no seu dizer, com uma piscadela de olho) ninguém o via.

José Guedes pareceu um pouco importunado por ter de falar de trabalho fora do horário de expediente, mas lá foi ouvindo ao que eu ia e quem era o objecto da minha cobiça: “Javier Mariño”, o livro de estreia em ficção de Torrente Ballester, publicado pela Editora Nacional, de Madrid, em 1943. “Não tenho ideia do que procura”, foi-me ele dizendo; “se, como diz, é uma primeira obra, proibida, há-de ser difícil de arranjar." Para depois acrescentar: "Curioso, esse seu don (adivinhei-lhe um certo desdém nessa forma de se referir a Gonzalo Torrente Ballester, que considerei extensiva a este seu dedicado leitor, e não achei graça nenhuma), simpatizante falangista, a levar porrada da censura do Franco! De facto, não conheço e, por isso, não tenhas grandes esperanças, meu filho! Mas vou tentar.” O aperto que me deu no braço, a despedir-se, com um piscar de olhos para uma das matronas – entretanto, mais duas tinham-se juntado ao convívio de “antes da ordem da noite” – e aquele tratamento pretensamente íntimo irritaram-me bastante menos do que os remoques ao meu sacrossanto Ballester, afinal de contas com algum fundo de verdade.

De tão frustrado que estava, ao sair daquela espelunca, lembrando-me de umas certas apreciações de um livreiro meu amigo, a propósito do tal ex-futuro padre que me mandara àquele lugar, nem sei como não tomei a decisão de me ir confessar ao bom do Martinho, por me ter deixado arrastar por más companhias. Uma vergonha!