domingo, 3 de maio de 2009

De como o mano borrou a escrita (depois, caldo de couve portuguesa)

A mim, agora, os versos saem-me em jorros, sem esforço, como uma diarreia.
António Ramos Rosa, na casa dos oitenta anos, em entrevista ao JL.

O mano foi excepcionalmente fluente na arte da escrita, que eu saiba pelo menos uma vez. Ele teria sete anos, estava na primeira classe, e eu mais dois.
Quando, naquela tarde de sol, nos viu de regresso a casa umas duas horas mais cedo do que era costume, a mãe não podia acreditar - as calças do benjamim escritas de cima a baixo e os sapatos também.
Saímos da escola à pressa, a minha mão na dele, a espaços; a professora tinha dado com ele muito parado, descobrindo depois que ele estava em urgências de "ir lá fora", sem pedir. Quando descíamos as escadas em direcção aos sanitários públicos - que na altura já os havia, precários, um pouco distantes dali, na Fonte Velha - a urgência sempre em crescendo, sem dar tréguas, a máquina intestinal do mano em roda livre, qual fenómeno da natureza, incontrolável pelos mecanismos da vontade ou da vergonha. "Aguentas?", foi a pergunta repetida até três quartos do caminho andado. Mas, quando o lugar de destino já estava mesmo ali, romperam-se as guardas do pobre, incapazes de conter por mais tempo a revolução interna que nos levara àquela parte.
Ao menos não havia gente por perto. A escritura foi obra de escassos segundos, em andamento lento, mas contínuo.
Impossível eliminar os frutos daquela abundância, traduzindo, limpar o fato e o calçado do agente e vítima de tal desmando. A única solução era fazer, ligeiros, o caminho de casa, por ruas e caminhos menos propícios a encontros, o infante em porte da maior compostura e dignidade, o acompanhante controlando uns insinuantes assomos de riso, sempre que lhe vinha à cabeça a judiciosa formulação, em palavras, dos momentos antecedentes - o mano borrara a escrita toda!

Agosto 2005
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Caldo de couve portuguesa

Ingredientes
250 g de toucinho entremeado
250 g de batatas cortadas aos quadrados
1 couve portuguesa cortada às tiras
1 cebola
2 colheres de azeite
1 dente de alho
Sal q.b.

Coze-se a carne e a cebola descascada, mas inteira, numa panela com água.
Quando a carne estiver cozida, retira-se a cebola.
Juntam-se as batatas, a couve, o alho, o azeite e tempera-se com sal.
Deixa-se cozer.
Antes de servir, retiram-se as batatas e desfazem-se com um garfo, juntando-as de seguida ao caldo.