domingo, 17 de abril de 2011

[XN] Quase cem anos antes, visitação e devassa em São Vicente e outras terras

São as denúncias que alimentam a Inquisição e um dos meios de as obter é levar os que são presos, por culpas de judaísmo, a denunciar conhecidos e parentes. Mas há outros meios, como seja enviar um visitador a uma terra, para recolher denúncias.
Foi assim, no ano de 1617, na vila de São Vicente. E isto mesmo fizeram em todo o bispado da Guarda, entre 1607 e 1625, no tempo dos senhores dom Filipe II e dom Filipe III.
No mês de Junho daquele ano de 1617 esteve o visitador do Santo Ofício, Simão Cardoso de Sampaio, na igreja do Convento de Santa Clara, acompanhado do escrivão; no domingo anterior, tinha havido procissão pelas ruas da vila, com a participação das autoridades civis e religiosas. Já então estariam afixados na porta da igreja matriz o Monitório, o Édito da Fé e o Édito da Graça, o primeiro com indicação dos crimes de judaísmo que deveriam ser denunciados - o descanso ao sábado e a celebração desse dia, os jejuns de segunda e quinta feira, a circuncisão dos rapazes, não se comer certas coisas, como toucinho, ou lebre, ou aves afogadas, nem peixe sem escama, ou a prática de rituais diferentes com os mortos, ou outra forma de abater os animais, a prática do grande jejum de Setembro, ou a benção dos filhos, pondo-lhes as mãos sobre a cabeça; também já fora publicado o Édito da Fé e o Édito da Graça, estabelecendo este que no prazo de 30 dias cada um se apresentasse a confessar culpas próprias e a denunciar culpas alheias; por esta via, recebiam indultos e, sendo achados culpados, se livravam de lhes confiscarem os bens.
Na igreja do Convento de Santa Clara, em São Vicente, apresentaram-se três pessoas, a conselho de seus confessores, para descarregarem suas consciências. Todas elas mulheres: Maria de Brito, casada com Constantino Fernandes, Guiomar Nunes e Maria Fernandes, ambas viúvas. Primeiro, juraram sobre os Santos Evangelhos dizer a verdade e guardar segredo perpétuo de tudo o que dissessem ou ouvissem em tal lugar, sobre qualquer pessoa que fosse, viva ou morta. Depois disso, o visitador mandou vir duas testemunhas, para que confirmassem as denúncias feitas pelas 3 mulheres, o que elas fizeram na Igreja Matriz.
Foram 15 as pessoas denunciadas pelas mulheres: Gaspar Mendes e sua irmã, Beatriz; Rodrigo Nunes, sua mulher Violante e a irmã desta, Clara; Clara Rodrigues e Beatriz, sua irmã; Simoa de Lucena, Gaspar Lucena e a mulher deste; Guiomar Nunes, Beatriz Fernandes, Maria Henriques, Branca do Porto e Ana Fernandes. Redigidos pelo escrivão da Visitação, Domingos Gomes, e assinados pelo escrivão e pelo visitador , Simão Cardoso de Sampaio, foram os mesmos remetidos ao Vigário Geral da Guarda, para que os enviasse ao Santo Ofício, para proceder "em conformidade".
Constança Nunes conhecia estas práticas, ao menos por ter ouvido contar, que a memória dessas atrocidades passa dos pais para os filhos e destes para os netos. Ao menos, para se acautelarem. Pelos mesmos anos que andaram em devassa em São Vicente, os da Inquisição fizeram outro tanto na vila de Idanha-a-Nova, a terra de morada dos pais e de nascimento de Constança.