domingo, 3 de abril de 2011

[XN] Segunda Estação - Constança Nunes na prisão: frio e medo


Com 50 anos, que eram quantos ela tinha, Constança Nunes era uma mulher velha quando foi presa, em Janeiro de 1706, no dia 13.Viúva de Francisco Lopes, levaram-na de São Vicente sabia lá ela para onde – tanto podia ser para Coimbra, Lisboa ou Évora, sendo que qualquer desses destinos era tão mau como os outros.

Ia acusada de praticar a religião dos judeus, sozinha ou com outras pessoas, um crime contra as leis do Reino.
“Tenho medo. Não é tanto da escuridão deste lugar, nem da fome e sede, nem dos bichos que por aí andam, nem dos barulhos que se ouvem à noite; nem mesmo do mal que me queiram fazer – tudo isso, sendo medonho, eu sei que sou capaz de aguentar. A ideia da morte também não será, que não me dá medo pensar que vou morrer. Não sei porquê, se será uma razão ou mais que uma, mas sinto um medo de morte. O frio também é muito e enorme o desconforto e a falta de tudo; o corpo é como se não fosse meu. Ouvi dizer que estou nos Estaus, no palácio deste nome – a filha de um sapateiro de Idanha-a-Nova a morar em Lisboa, num palácio! Mais propriamente, nos fundos do palácio, umas masmorras penetradas pelo bafio e a humidade. Ontem, sentia a cabeça a rebentar, mas hoje está pior; penso nos filhos e nos parentes, e na desgraça da nossa vida. E choro.”
Cristãos-novos é como lhes chamam, há duzentos e tantos anos, desde que o rei D. Manuel os mandou juntar em Lisboa, amontoando-se uns vinte mil no Palácio dos Estaus, ao Rossio, onde os aspergiram com água, declarando-os por esta forma baptizados e convertidos à religião cristã. Sem o pedirem, ou sequer desejarem, tinham entrado na condição de judeus, com a promessa de embarcarem em segurança para outro país em que os tolerassem, saindo de lá cristãos-novos. E não somente eles, mas todos os judeus portugueses e os seus descendentes. Muitos outros tinham sido baptizados e convertidos à força, e, sendo menores de 14 anos, tirados aos pais e entregues a famílias cristãs.
Quem primeiro prenderam em São Vicente foi Maria Nunes, no dia 12 de Abril de 1704, e três dias depois levaram sua irmã, Isabel Henriques Nunes; depois, em Novembro do mesmo ano, o irmão de Constança Nunes, Antão Vaz Ribeiro, no dia 7, e, no dia 10, a mulher deste, Isabel Ferreira. Uma razia naquela família, e em São Vicente, onde todos eram moradores, sendo que Maria Nunes e Isabel Nunes de lá eram também naturais. O nome de Constança Nunes aparece nos processos de todos eles na Inquisição de Coimbra; nos termos da justiça inquisitorial, na condição de denunciantes, aqueles são dados como testemunhas de acusação no processo de Constança Nunes, na Inquisição de Lisboa. Enfim, o modelo de denúncia secreta a funcionar em pleno, alargando em contínuo o raio de acção do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal.
“Depois do meu irmão e outros parentes, agora sou eu a estar presa, e depois serão outros e mais outros. O meu nome o terão arrancado a alguém, que não sei quem é, se morto ou vivo. De mim, hão-de querer arrancar outros nomes, de gente que comigo tenha guardado o sábado e feito o jejum grande dos judeus, e saber se rezámos as orações dos cristãos ao nosso modo. Antes, já me terão tirado os bens. Em tudo isto eu penso, aqui cheia de frio. E tenho medo do que aí vem.”