segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O que escreve direito por linhas tortas

Encontrei-a em Paris, tinha eu pouco mais de 20 anos. A expressão do rosto era a mesma, serena como sempre, a pele lisa e imaculada, os mesmos olhos – toda ela sem marcas do longo “séjour parisien”, como se os anos não tivessem passado; o tronco despido, em ligeira torção, indiciava um movimento que lhe fizera escorregar ao longo do corpo, até se deter nos quadris, uma peça de vestuário de nome indefinido que lhe cobria, de forma irrepreensível, todo o hesmisfério sul – púbis, pudenda, pernas e quase integralmente os pés.

Tinha conhecido a senhora de Paris no Tortosendo, oito anos antes, ainda as missas eram ditas em latim, quando o vernáculo começava a invadir a liturgia, a começar pelo canto. E se nós cantávamos!, num êxtase que nos transportava a uma dimensão superior de comunhão com o indefinível (que o canto tem destas virtudes e a inocência dos 12 anos pode mais do que a razão ou a fé na maioridade), um coro de duzentas vozes seguindo o Reis, que todos chamávamos Regina, para distinguir a melhor voz que passou por aquela casa nos anos sessenta.

Ingressado dois anos antes na casa dos padres missionários da terra, vindo de umas berças menos frias, mais a sul, foi então que eu e a senhora de Paris nos começámos a dar, em boa verdade, eu mais do que ela; no princípio, uma coisa inconsequente e sem história, tudo muito calmo e sem sobressaltos dignos do nome; mas depois foi-se insinuando qualquer coisa, até que, um dia, em ofício canónico – cantava-se a “Miraculosa Rainha do Céu, sob o Teu manto tecido de luz...” – senti que ela se intrometia na minha intimidade com a Virgem da imagem posta na parede da capela, do lado da sacristia, onde ainda está. Uma súbita aflição suspendeu-me a projecção da voz, na incerteza de para qual das senhoras iam as minhas invocações de fé. Cheguei a temer uma súbita e prematura perda de vocação – que era o que os estudantes pobres mais receavam; pior, só a certeza de um futuro infeliz sem os imprescindíveis pilares da fé. Se todos temos um anjo da guarda, o meu tinha-me falhado na hora da maior precisão.

Como se sabe, havia na casa uns tantos livros profanos, sendo os de Karl May – “Pelo Curdistão Bravio”, “De Bagdad a Istambul” e “Winnetou”, em 3 volumes – os mais disputados. Àqueles, não obstante, eu sempre preferi dois calhamaços já bastante gastos, de conteúdo vário, por sinal muito pouco disputados pela população local. A obra era um digesto de “cultura geral” bastante ilustrado, em papel demi-couché de qualidade duvidosa, encadernação em inteira de pano cinzento-rato, tratando temas da maior transcendência, com salpicos de menor densidade, orientados todos eles à formação integral do indivíduo – para amostra, no primeiro volume, cito de memória: as formigas cinzentas do Calaári, os heróis esquecidos da Primeira Guerra Mundial, a história admirável das plantas carnívoras, ou como Leonidas foi derrotado nas Termopilas; também falava dos primeiros tempos da aviação, do governo no século de Péricles e da cultura helenística, estes no segundo volume. Um verdadeiro “livro da sabedoria”, brasileiro, editado provavelmente em São Paulo, no ano do centenário da independência.

Entre as duas Guerras, e mesmo uns anos depois, a ilustração dos livros fazia-se a preto e branco, uma técnica que, conjugada com a má qualidade da impressão e do papel, era capaz de transformar notáveis obras de arte em coisas manhosas de baixíssimo escalão. Tal foi o estado e as circunstâncias em que conheci a futura “senhora do Louvre”, que nem ia muito mal a preto e branco, a despeito da inferioridade dos materiais.

Da mesma forma que as vestais que hoje “fazem le trottoir” no 10º "arrondissement" de Paris têm pouco a ver com as de outro tempo, aquela senora que vi, desataviada, em Paris, dez anos depois, não era a mesma para quem tinham ido os mais piedosos “totus tuus” da minha vida. De todo! Ela tinha qualquer coisa de menos – e isso fazia toda a diferença.

Na altura, ainda não tinha sido construida a pirâmide de vidro, em frente do Louvre; tenho ideia de ter entrado do lado do Carrocel, a ala das antiguidades orientais: um curto estágio na fila para a compra dos ingressos e depois o périplo em passo acelerado por escadas, portas, corredores, guarda-vento, mais escadas, uma curta paragem no primeiro patamar, para admirar a Vitória de Samotrácia, que saudei no nosso primeiro encontro ao vivo; depois, mais escadas, mais corredores e salas, passando por matronas, senadores, deusas da caça, atletas, afrodites e outras celebridades várias do portfolio universal, algumas delas – a Vénus de Milo primeiro que todas – minhas conhecidas do in-folio de cultura geral do Seminário do Tortosendo.

Aparte a circunstância de estarem ali todos juntos, para mim era a nudez o que mais distinguia aquele olimpo de notabilidades. Nesse estado (nus, ou pouco menos) teriam parte deles entrado no original do “Livro da Sabedoria” da sala de estudo do meu terceiro ano, como Adão e Eva, antes do pecado; até um dia – aquele em que alguém descobriu, no vademecum duma discutível moralidade, que o nu mais inocente das artes entrava na categoria do menos próprio, do indecente. E foi assim que, empurrado por uma força sobrenatural e submetido a uma vontade de outro mundo, essa boa alma deu um passo para a imortalidade; e pegando no dito livro, a mão guiada por uma subtileza de ordem superior, o virtuoso artista vestiu, com caneta de tinta preta, um após outro, todos os corpos nus que encontrou impressos – nos homens, calções de perna muito decentes; nas senhoras, calção do mesmo modelo e um coletinho a resguardar-lhes o peito.

Deuses e heróis de antes e depois de Cristo ter andado no mundo, gente vulgar e assinalada, faunos, ninfas e graças várias, até umas quantas Virgens a amamentar Jesus – todos ele libertou da nudez, para fazer do tal alfarrábio um livro de virtude para consumo seminarístico. Seis dias durou a pulsão criativa do anónimo iconoclasta, que nesse entretanto não comeu nem disse missa; no sétimo dia, como fez Deus no episódio da criação, contemplou o trabalho feito e descansou na maior beatitude; a seu ver, a obra realizada era a expressão genuína do triunfo do bem sobre o mal.

Um milagre dos verdadeiros, foi o que ele fez, ou a mão de Deus, através dele; e eu, homem de pouca fé, curvo-me à invocação da sua memória – não fora o arrebatamento místico do artista anónimo, a minha Vénus de Milo seria como a dos outros, a fugaz emoção de um momento de passagem numa sala do Louvre. Não, a do “Livro da Sabedoria”, a Vénus de Milo dos meus doze anos, é outra coisa, muito mais do que uma obra de arte com prazo de validade na memória pessoal, muito por causa do curioso atavio com que o profanador sem nome lhe escondeu os seios: conferindo-lhe um certo recato, o coletinho acrescentou à beldade um toque de enigma e sedução, fazendo dela um estimulante desafio à curiosidade e à imaginação de um donzel da minha idade, ao tempo uma granítica vocação religiosa.

Quanto pode, em circunstâncias propícias, um coletinho de alças – desde que virtuoso!

  


A Vénus de Milo de toda a gente