sábado, 28 de março de 2009

Sopas de memória, com alguns versos

Escreveu o poeta:
Trago os tordos na cabeça desde os campos
d’Atalaia para pôr neste poema –
o vento deixava-nos à porta
ora uma luz rasteira ora um esfarelado
chiar de carros de feno,
dos ramos altos
a tarde caía nos cabelos,
vivíamos sem pressa rente aos lábios.
(Eugénio de Andrade – Trago os tordos na cabeça, in O peso da sombra, 1982)
Quanto eu gostava de ter escrito isto!
Ou de saber aparelhar uma pedra, a golpes certeiros, nas mãos o pico bem aguçado, como vi o meu pai fazer, tirando da massa inerte e bruta do granito um banco de sentar ou os cunhais de uma casa.

Ou de saber fazer, à enxada, uma leira de cebolas, como só o meu avô Teodoro era capaz - uma obra-prima de geometria: regos direitos e cômoros em rigorosa simetria, a terra tão lisinha que parecia ter sido afagada com as mãos.

Abençoadas as mãos que têm o dom da poesia. Assim o disse Eugénio:

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.
(Eugénio de Andrade – A arte dos versos, in Rente ao dizer, 1992)
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ALGUMAS SOPAS
Algumas sopas, de memória: a miga de batata, em casa da avó (tão desenxabida, meu Deus!), as sopas da Semana Santa, lá em casa, tão detestáveis como a sopa de favas; a sopa de feijão pequeno (a mãe ficava triste só de pensar nela), a sopa de beldroegas descoberta na primeira ida ao Algarve (lá em casa, as beldroegas só serviam para dar ao porco), o caldo verde que não comi enquanto usei bigode, e a sopa da matação, obrigatória em dia de matança do porco.