Falemos de bibliotecas, a propósito de Vieira. Primeira, a biblioteca das cores de Maria Helena - os azuis, os vermelhos, os verdes, os brancos ..., uma paleta conferível na obra e declarada num testamento aos amigos: "deixo aos meus amigos / um azul cerúleo para voar bem alto / um azul cobalto para a felicidade..." e as outras cores, como se pode ler mais à frente.
Segunda, a biblioteca dos retratos - cinquenta e tal anos de retratos de Vieira por Arpad, a pessoa que melhor conhecia a pintora por fora e por dentro, como referia a pintora. Vejam-se alguns desses retratos-poemas em Retratos de Vieira por Arpad Szenes, uma edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de 1983, que se vende por aí.
Terceira, a biblioteca de temas da artista - a música, os retratos de René Char, a luz, o movimento, a guerra, as cidades.
Quarta, e última, os lugares onde se arrumam memórias, espaços de satisfação e descoberta - as bibliotecas propriamente ditas, que MHVS pintou.
Esta, a "Bibliothèque en feu" (1974), pertencente ao Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão, em Lisboa, é uma das mais conhecidas.

Mas há muitas mais - ao todo, mais de trinta, para que conste - que Vieira da Silva pintou, desde os anos de 1930, sendo as últimas da década de 1980: a "Biblioteca do Alberto", do poeta Alberto de Lacerda, entenda-se, de 1982, e a "Bibliotheca", de 1984, incluida na edição do celebrado "De bibliotheca", de Umberto Eco (Caen, Ed. l'Echoppe, 1986).
Pelo caminho, bibliotecas de muitas cores e feitios, hoje dispersas por muitas "mãos", de que aqui se dá notícia de algumas - a "Bibliothèque" (1949, Paris, MNAM), com uma mancha predominantemente vermelha, uma biblioteca humorística ("L'autre bibliothèque humoristique", 1947-1948, FASVS), outra, de bolso ("Bibliothèque de poche", 1960-1965, col. privada).
A fechar, em corpo inteiro, uma biblioteca na árvore

a (chamemos-lhes assim) biblioteca de Sofia

e a biblioteca Naggar (designação igualmente não oficial), que, sendo por agora a minha preferida, vou chamar "a minha biblioteca". 
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As cores de Vieira:

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As cores de Vieira:
"Eu tenho cores de Verão e cores de Inverno. Quando está calor, gosto de pintar em azul, em verde, em branco. O branco, aliás, posso usá-lo durante todo o ano. E quando está frio, gosto do vermelho. 'La Bibliothèque rouge', por exemplo, comecei-o em Paris, lentamente, depois vim para aqui, para Yèvres, no mês de Maio, estava frio, continuei com ele, até que um belo dia desatou a fazer calor e eu virei-o para a parede. Terminei-o no Outono, quando principiei a desejar o calor" (MHVS, in Anne Philipe - O fulgor da luz. Lisboa: Ed. Rolim, s/d).
TESTAMENTO DE VIEIRA:
Deixo aos meus amigos
um azul ceráleo para voar bem alto
um azul cobalto para a felicidade
um azul ultramarino para estimular o espírito
um vermelhão para que o sangue circule alegremente
um verde musgo para acalmar os nervos
um amarelo de ouro: riqueza
um violeta cobalto para o devaneio
uma garança porque deixa ouvir o violoncelo
um amarelo bário: ficção científica, brilho, esplendor
um ocre amarelo para aceitar a terra
um verde veronese para a memória da Primavera
um índigo para que o espírito de ajuste à tempestade
um laranja para treinar a vista de um limoeiro ao longe
um amarelo limão para a graça
um branco puro: pureza
terra de Siena natural: a transmutação do ouro
um negro sumptuoso para ver Ticiano
uma terra de sonbra natural para aceitar melhor a melancolia negra
uma terra de Siena queimada para o sentimento da durabilidade.
(in Veira da Silva nas colecções internacionais. Lisboa: Assirio & Alvim e FASVS, 2004).
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Obras reproduzidas de:
Bibliothèque en feu: CAMJAP, Lisboa.
Biblioteca na árvore: Vieira da Silva nas colecções internacionais. Lisboa: Assirio & Alvim e FASVS, 2004.
Biblioteca de Sofia: Lassigne, Jacques; Weelen - Vieira da Silva. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d (1993?).
Biblioteca de Naggar: Roy, Claude. Vieira da Silva. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.
Siglas:
MHVS = Maria Helena Vieira da Silva
FASVS = Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva
Paris, MNAM = Musée National d'Art Moderne de Paris
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Com tanta substância, supra, hoje não há sopa.