domingo, 21 de junho de 2009

As bibliotecas de Vieira da Silva

Passaram, em 2008, os 100 anos do nascimento de Maria Helena Vieirada Silva. Autora de uma extensa obra de pintura (o "catalogue raisonné" de 1998 regista 3.486 obras), MHVS foi mais estrangeira do que portuguesa (o regime de Salazar tratou-a bem mal, como se sabe, recusando-lhe a nacionalidade). Uma amostra da obra da artista (e do marido, Arpad Szenes, nascido húngaro) pode ser vista em Lisboa, no museu Arpad Szenes-Vieira da Silva, na lindíssima Praça das Amoreiras, próxima do Largo do Rato.
Falemos de bibliotecas, a propósito de Vieira. Primeira, a biblioteca das cores de Maria Helena - os azuis, os vermelhos, os verdes, os brancos ..., uma paleta conferível na obra e declarada num testamento aos amigos: "deixo aos meus amigos / um azul cerúleo para voar bem alto / um azul cobalto para a felicidade..." e as outras cores, como se pode ler mais à frente.
Segunda, a biblioteca dos retratos - cinquenta e tal anos de retratos de Vieira por Arpad, a pessoa que melhor conhecia a pintora por fora e por dentro, como referia a pintora. Vejam-se alguns desses retratos-poemas em Retratos de Vieira por Arpad Szenes, uma edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de 1983, que se vende por aí.
Terceira, a biblioteca de temas da artista - a música, os retratos de René Char, a luz, o movimento, a guerra, as cidades.
Quarta, e última, os lugares onde se arrumam memórias, espaços de satisfação e descoberta - as bibliotecas propriamente ditas, que MHVS pintou.
Esta, a "Bibliothèque en feu" (1974), pertencente ao Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão, em Lisboa, é uma das mais conhecidas.

Mas há muitas mais - ao todo, mais de trinta, para que conste - que Vieira da Silva pintou, desde os anos de 1930, sendo as últimas da década de 1980: a "Biblioteca do Alberto", do poeta Alberto de Lacerda, entenda-se, de 1982, e a "Bibliotheca", de 1984, incluida na edição do celebrado "De bibliotheca", de Umberto Eco (Caen, Ed. l'Echoppe, 1986).
Pelo caminho, bibliotecas de muitas cores e feitios, hoje dispersas por muitas "mãos", de que aqui se dá notícia de algumas - a "Bibliothèque" (1949, Paris, MNAM), com uma mancha predominantemente vermelha, uma biblioteca humorística ("L'autre bibliothèque humoristique", 1947-1948, FASVS), outra, de bolso ("Bibliothèque de poche", 1960-1965, col. privada).
A fechar, em corpo inteiro, uma biblioteca na árvore
a (chamemos-lhes assim) biblioteca de Sofia
e a biblioteca Naggar (designação igualmente não oficial), que, sendo por agora a minha preferida, vou chamar "a minha biblioteca".
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As cores de Vieira:
"Eu tenho cores de Verão e cores de Inverno. Quando está calor, gosto de pintar em azul, em verde, em branco. O branco, aliás, posso usá-lo durante todo o ano. E quando está frio, gosto do vermelho. 'La Bibliothèque rouge', por exemplo, comecei-o em Paris, lentamente, depois vim para aqui, para Yèvres, no mês de Maio, estava frio, continuei com ele, até que um belo dia desatou a fazer calor e eu virei-o para a parede. Terminei-o no Outono, quando principiei a desejar o calor" (MHVS, in Anne Philipe - O fulgor da luz. Lisboa: Ed. Rolim, s/d).

TESTAMENTO DE VIEIRA:
Deixo aos meus amigos
um azul ceráleo para voar bem alto
um azul cobalto para a felicidade
um azul ultramarino para estimular o espírito
um vermelhão para que o sangue circule alegremente
um verde musgo para acalmar os nervos
um amarelo de ouro: riqueza
um violeta cobalto para o devaneio
uma garança porque deixa ouvir o violoncelo
um amarelo bário: ficção científica, brilho, esplendor
um ocre amarelo para aceitar a terra
um verde veronese para a memória da Primavera
um índigo para que o espírito de ajuste à tempestade
um laranja para treinar a vista de um limoeiro ao longe
um amarelo limão para a graça
um branco puro: pureza
terra de Siena natural: a transmutação do ouro
um negro sumptuoso para ver Ticiano
uma terra de sonbra natural para aceitar melhor a melancolia negra
uma terra de Siena queimada para o sentimento da durabilidade.
(in Veira da Silva nas colecções internacionais. Lisboa: Assirio & Alvim e FASVS, 2004).
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Obras reproduzidas de:
Bibliothèque en feu: CAMJAP, Lisboa.
Biblioteca na árvore: Vieira da Silva nas colecções internacionais. Lisboa: Assirio & Alvim e FASVS, 2004.
Biblioteca de Sofia: Lassigne, Jacques; Weelen - Vieira da Silva. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d (1993?).
Biblioteca de Naggar: Roy, Claude. Vieira da Silva. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.

Siglas:
MHVS = Maria Helena Vieira da Silva
FASVS = Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva
Paris, MNAM = Musée National d'Art Moderne de Paris
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Com tanta substância, supra, hoje não há sopa.

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