domingo, 1 de maio de 2011

Ainda na pista de Javier Mariño - A paixão das primeiras edições assinadas (parte 2)

Confessar que voltei ao bar da travessa da Água de Flor não será propriamente uma vergonha; ainda assim, saibam que foi num dia de grande abatimento físico e moral que o Agostinho Frade me arrastou (é uma forma de dizer) para aquele antro, uma quinta-feira. Eu não estava no meu juízo – um homem de certa compostura, vestido como se fosse a ver Deus, acompanhado por um tipo com um ar desgraçado (posto que sem cheiro, apesar dos quatro dias já passados sobre a barrela semanal, nos Banhos de São Paulo, ao Cais do Sodré), para o baixote e sobremaneira peludo, envergando conjunto de camisa grená-laranja e calça preta, mocassins cremes e meias também pretas. Um mimo, pese embora a ausência de barba, ou bigode.

No Lindoso, não havia onde pôr um pé e a animação era grande. Sentámo-nos perto da entrada, bem apertados, por falta de espaço, e ele encomendou bebidas – uma vez, outra e não sei quantas vezes mais, sempre ele; a mulher que trazia as bebidas, com um vestido azul a denunciar-lhe a barriga indecente e o excesso de carnes, não tinha um minuto de descanso, entre actos de serviço “sempre-a-aviar” e respostas aos desafios e apreciações que lhe chegavam de todos os lados – tudo no maior respeito, pois sendo a casa de gente séria, ali não se admitem faltas de respeito a quem trabalha. Um pouco aturdido com o ambiente, bastante quente e suado para o meu gosto, praticamente sem espaço para me mexer, que me deixei ir na conversa, quando se desatou a língua ao meu companheiro. “Não sei já te falei dela”, começou ele, em tom meio íntimo, demasiado próximo do meu ouvido, referindo-se à mulher que todas as quintas-feiras à noite fazia encher aquele bar da travessa de Agua de Flor, ao Bairro Alto em Lisboa. Tinha sido por ela que o ex-futuro padre me levara ali, e eu convencido que ia por causa do Guedes e do “meu” livro de don Gonzalo.


Tinha o nome de Rosa e uma cara que era só olhos – grandes, provavelmente cinzentos, capazes de cegar um pobre com fome. Movia-se com grande à-vontade entre todos aqueles homens, na cara um ar místico digno de Santa Juana de la Cruz. Não parecia ser mulher daquele tipo de ambientes; de igreja, sim, sem dúvida.

Extraordinária a altivez daquela mulher, movendo-se entre as mesas apinhadas de homens, todos a quererem ser servidos por ela, batendo-se por uma palavra sua ou por um olhar, comendo-a com os olhos, ela tão inacessível quanto desejada. Vinha todas as quintas-feiras, depois das onze, quando a casa já estava a rebentar pelas costuras e nessas noites trabalhava-se até muito mais tarde, as bebidas e as mulheres, mesmo as mais velhas e gastas, sempre a saírem.

Frequentava Santa Isabel; sendo nova na comunidade, era estimada por todos; sabia-se que, durante a semana, cumpria um estrito programa de boas obras, visitando os doentes. Fiel ao mandamento de “não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita”, guardava recato sobre essa espécie de penitência, que não deixava de intrigar mentes mais analíticas, antes mesmo de o número de doentes (homens) acamados da paróquia ter aumentado duas vezes, uma torpeza a ser desmascarada no futuro.

Chegou a bichanar-se que ela se deitava com eles, os velhos das casas aonde ia, ou lhes mexia por baixo dos cobertores e até se falava de quanto recebia por cada visita e de coisas que lhe davam e das propostas para lhe porem casa, comentários a que ela respondia encolhendo os ombros, sem dizer nada, cada um ficando no que lhe parecia. Que, em boa verdade, até eu, depois de a ver, tenho a certeza de que, mesmo velho, só um cego não se quereria deitar no mar daqueles olhos, inquestionavelmente verdes para uns, para outros sem dúvida azuis, nem que fosse para neles se perder.

Que nada disso, confessava-me o "padre" Agostinho, à saída do Lindoso naquela quinta-feira: ela ia às casas dos velhos para lhes fazer companhia, se já não podiam sair de casa, a dar-lhes conversa, com a bênção da família chegada, num caso ou noutro a ler-lhes as passagens dos seus romances preferidos ou de algum velho livro de religião, tudo – sempre – na maior decência; se tanto, uma carícia nas costas da mão, descendo do pulso até à ponta dos dedos, ou uns afagos por cima da roupa de quarto aos acamados, mas sempre – ele podia jurá-lo – na maior pureza de actos e pensamentos.

Num excesso de intimidade, foi explícito sobre os seus planos de vida a dois, com ela, no recato de Santa Rosa do Douro, ou do Zêzere, não estou certo; senão, que se havia de matar. Na despedida, perguntou-me pelo Guedes, se sempre o tinha encontrado, para acrescentar com a dignidade e convicção possíveis num bêbado: “Depois de te falar dele, da outra vez, soube cá umas coisas do tipo, que espero sejam mentira; se não, vai ser muito mau para ele. Palavra de Agostinho.”

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