terça-feira, 19 de julho de 2011

Aos inocentes patifes que puseram o colhão do Almeida na literatura universal


Para o Abel Martins

Conheci o Almeida no meu primeiro dia de vida profissional, sentado numa cadeira de pau, no seu posto de trabalho, com aquele vulto entre as pernas, salvo seja. “Já viste o colhão do Almeida?”, perguntou um dos rapazes a meio da tarde desse mesmo dia e eu disse que sim, com um certo acanhamento, ouvindo-se então um coro alarve de palavras fora da etiqueta, com muitos gestos a condizer, que me fez sentir bem naquele meio e membro do grupo de corpo inteiro.


O senhor Almeida era um homem de monossílabos e linguagem atabalhoada, em que aprendi a distinguir as palavras exactas a colocar nas requisições, como resma de papel almaço, “escamartilhão”, tinta para almofada de carimbo ou pasta forrada a papel diabo, com ferragem; na nossa ingenuidade dos dezasseis ou dezassete anos, dávamos-lhe a idade da sé de Lisboa, um tempo aliás suficiente para o seu particular adereço adquirir a envergadura conhecida por todos, granjeando ao seu distinto possuidor os nossos maiores respeitos. Era de admirar que só tivesse uma filha, e não se sabe quanto orgulho tinha no seu material.


Também eu levei um ou outro, dos que entraram depois na empresa, a ver aquela digníssima peça; Almeida arreliava-se com isso, e, nesses momentos, os seus monossílabos transformavam-se em palavrões medonhos em forma de balas arremessadas por um titã justiceiro, mas na verdade muito injustos para com os inocentes rapazes.


Com o passar dos anos, mais avinagrado ia ficando o Almeida. Um dia, com o prazo de validade há muito ultrapassado, disse “até amanhã”, como de costume, e não voltou ao Economato, passando à condição de reformado. Foi-se o homem com o seu adereço, mas deixou deste a memória, que nós tomámos como missão preservar na sua autenticidade e espalhar por onde pudéssemos. Quantas conversas entre nós, sobre o colhão do Almeida, e quantas vezes a história foi contada a terceiros, que a contaram a outros, que a contaram … sabe-se lá onde e a mais quem – do velho, do novo, deste e, calhando, até do outro mundo.


Até que, um dia, de mansinho, o tivemos de volta, em forma e na maior dignidade, aos ombros de Gabriel García Márquez, em “O Amor nos Tempos de Cólera”. Sai prosa:


“À água das cisternas foi atribuída durante muito tempo e com muita honra a hérnia do escroto, que tantos homens da cidade suportavam não só sem pudor como ainda com uma certa insolência patriótica. Quando Juvenal Urbino ia à escola primária não conseguia evitar um arrepio de horror ao ver os herniados sentados à porta das suas casas nas tardes de calor a abanarem o testículo enorme como se fosse uma criança que lhes tivesse adormecido entre as pernas. Dizia-se que a hérnia emitia um pio de pássaro lúgubre nas noites de tempestade e que se retorcia com uma dor insuportável quando queimavam por perto uma pena de galináceo, mas ninguém se queixava daqueles percalços, porque uma hérnia grande e bem conservada ostentava-se como um apanágio de homem.”


Mesmo quem nunca tivesse conhecido o senhor Almeida seria capaz de reconhecer neste excerto o colhão do velho ecónomo, que nós celebrámos durante tantos anos, e cuja fama conseguimos, sem desfalecimentos, levar tão longe e com tanto sucesso, ao ponto de torná-lo matéria-prima da melhor literatura.


Num mundo mais justo, Almeida haveria de descer à Terra, para agradecer aos inocentes patifes que, por muito falarem no colossal adereço, fizeram do seu titular personagem de romance.

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