no dia mundial do livro
LER É MAÇADA
Já conhecia ambas, a primeira, de ter ouvido
falar; a segunda, de uma visita anterior. São sítios onde se vai aos livros,
para ver e comprar. Como eu fiz. O Miguel Ferreira levou-me lá, a Hay-on-Wye, num sábado de manhã; a ida
a Óbidos, num fim-de-semana, este Inverno, foi prenda da namorada.
Hay-on-Wye (na língua da terra o nome da localidade é muito mais complicado, mas
aqui não vale a pena entrar em pormenores) é na fronteira entre o País
de Gales e a Inglaterra (Maria Filomena Mónica, que também por lá andou,
reincidindo, dá testemunho interessante sobre essa “terra dos livros” no
recente A minha Europa, ed. A Esfera
dos Livros, 2015).
A vontade de empreender a viagem começara numa
anterior estada na capital do Reino Unido, que incluiu deambulações pelos
alfarrabistas de Charing Cross Road e a frequência de uma feira de profissionais
livreiros na cave de um hotel, na Russel Square, ao lado do Museu Britânico.
Ali comprei uma biografia de Dom João de Castro, em língua portuguesa, escrita
por Jacinto Freire de Andrade, uma bonita edição in octavo da Typographia Rolandiana, 1786. Nunca tinha pago um
valor tão alto por um livro, 75 libras, e durante algum tempo duvidei que tivesse
feito uma boa compra; percebi que tinha feito bem quando li, bastante mais
tarde Rubens Barbosa de Moraes: «nunca se arrependa por não ter comprado…». Enquanto
me aliviava daquela verba, o livreiro, compondo um personagem menos vitoriano, foi-me
sugerindo que colocasse Hay na agenda: «a cidade dos livros, não conheces? Vem
gente de todo o mundo, bibliófilos e curiosos. Must gooo!»
Estava frio, na ida a Hay-on-Wye, alguma
neblina; enquanto por lá andámos, uma cacimba desagradável estabilizou-nos a
temperatura corporal em níveis para o baixo. Um tempo de excepção foi o que
tivemos – bom tempo, quero dizer, que o mais comum, lá, é chuva a sério e mais
frio. Os locais pareceram-me deslocados para tais geografias: nós perfeitamente
ambientados, roupinha quente, um impermeável, eles de roupa ligeira, muitos em
t-shirt de meia manga. Com aquelas temperaturas, em tais preparos?! Duvidei que
cheguem a velhos – ou não tem nada a ver?
Quem colocou Hay-on-Wye no mapa foi um senhor,
pelos vistos voluntarioso, de sua graça Richard Booth, ao declarar a
independência de Hay e proclamar-se rei do lugar, nomeando o seu cavalo como
primeiro- ministro. Estava-se no “dia das mentiras”, 1 de Abril, em 1977, o ano
da fundação do reino dos livros. A ideia de base parece ter sido a criação, a
nível local, de uma indústria de turismo centrada no comércio do livro, que Sua
Majestade projectava como remédio para a continuada decadência da localidade,
atolada na inércia, e sem motores de desenvolvimento económico. O próprio rei Ricardo Coração de Livro (Richard Booth)
abriu a sua primeira livraria em 1961, ainda lá está, em Hay. O livro em
segunda mão é a alma de Hay-on-Wye, numa filosofia de que todo o livro é
valioso e para cada livro existe um cliente.
Ao todo, em Hay-on-Wye, são uns 25 pequenos
negócios de venda de livros, a que se juntaram mais recentemente lojas de
outros tipos de artigos; uma velha fábrica, uma capela e mesmo o castelo são
locais onde se vendem alfarrábios e outros manuseados, vulgaridades e
raridades, a bons preços. Há-as especializadas (infantil/juvenil, viagens, comics, crime e mistério, etc.) e as
generalistas; e também vendas ao ar livre, como vem nas fotografias do lugar. De
todas, preferi a Addyman Annexe e a (não
podia ser outra) Richard Booth, que
se ufana de ser a maior loja, em todo o mundo, de livros em segunda mão. Trouxe
de lá um Humours of History,
verdadeiro manual de interpretação humorística de 160 episódios da História de Inglaterra
– a colheita possível, que nas primeiras visitas, se me deslumbro, a compra me
é sempre penosa, pelo muito que tenho de rejeitar. De todo o modo, um dia de
papinho cheio.
A Óbidos era uso ir-se pela ginja, o passeio
na muralha, a paisagem envolvente e para lhe percorrer as ruas; os mais
afortunados ficavam de um dia para o outro. Há uns anos, conheço eu quem fosse
lá ao Festival do Chocolate, passando meio dia a tentar estacionar, para sete
minutos de degustação do santo cacau tratado com competência e imaginação – a
quê mais podia aspirar um justo?
O homem dos livros em Óbidos foi – ainda é –
um senhor chamado José Pinho. Tinha fundado a Ler Devagar, um espaço livreiro que se dá a frequentar em
Alcântara, numas antigas instalações industriais, que agora levam o nome de LX Factory. Em Óbidos, o projecto (já
completo?) é de 12 livrarias, incluindo duas infantis. Querendo, pode-se
conferir a filosofia do conceito numa entrevista de Pinho, na revista Ler, de Setembro de 2013, e a sua aplicação,
in loco, em Óbidos.
Desfrutei, especialmente, de três livrarias de
Óbidos: primeira, a Santiago, instalada numa antiga igreja, desactivada,
generalista, cheia de luz e de livros, um prodígio de design interior ao serviço da nova função, operada (a livraria de
Óbidos) pela editora/livraria Letra Livre (conhecem? ali na calçada do Combro,
e agora com um espaço aqui mesmo ao lado, na rua da Guiné); segunda, a Livraria
alfarrabista generalista da Adega, no Espaço Ó, à entrada da localidade, e,
terceira, a Livraria do Mercado, aquela onde mais me demorei e enfeirei com
critério, Urbano, Régio, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, coisas velhas,
um de cada. Outra surpresa, da oferta estalajadeira da Vila Literária foi a estadia, pernoita incluída, literalmente no
meio de livros – assim é, agora, o antigo convento (concluído, afinal, fora de
tempo, em 1830, tempo de secularização, pelo que não chegou a receber
religiosas), que virou hotel literário, as paredes forradas de estantes, livros
nos espaços de estar, de comer, de dormir. Também vendem livros – foi de lá que
a namorada trouxe uma velha edição inglesa de Mulherzinhas, da avó Louisa May Alcott, que a Portugália publicou,
há uns anos, referenciando a obra da autora como literatura aconselhada a
meninas adolescentes. Para conferir, querendo.
No Dia Mundial do Livro, tem sentido celebrar Pinho
e Booth – faça-se! E celebrar Óbidos e Hay-on-Wye – ir lá, podendo. Quanto ao
mais, tivesse eu discípulos ou filhos, e valessem as minhas opiniões alguma
coisa, eles festejariam este Dia Mundial, concedendo-se um dia de descanso – não
lendo, que de leituras, também há que descansar. Para, no dia seguinte, voltar ainda
com mais prazer à rotina. A eles, aos livros!
Sebastião Baldaque
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