domingo, 2 de agosto de 2009

Ler com direitos

Um enormíssimo prazer, é o que é a prática da leitura. Abrir mansamente o livro, numa página ao calha, e ler um parágrafo, como quem não quer a coisa, e depois deixar-se levar por ali adiante, sem esforço, nem resistência, virar a página e continuar, já esquecido de onde se está... e continuar por aí fora. Pode ser numa livraria, numa biblioteca, onde calha o livro apanhar-nos, como de surpresa, e nós deixarmos que ele tome conta de nós. É bom, sim senhora!
Mas, nem sempre é assim. Às vezes o leitor e o livro não se entendem, a corrente do prazer não se estabelece, e pronto - é deixar estar; pode ser que noutra altura aconteça, se a oportunidade se deparar. É frequente acabar assim a minha relação com um livro específico; paciência, minha amiga. Pior, quando esse acto se repete com o mesmo autor, e por essa via se arruma este no arquivo dos que não nos despertam curiosidade. Nuns casos, não se perde grande coisa; noutros, sim - mas (à falta de melhor remate), é a vida.
Todos temos uns tantos autores a que achamos menos graça. Alguns, gente premiada e publicamente reconhecida como "grandes da escrita", o que, para certas companhias, não é a melhor carta de apresentação. "É lá possível que V. não goste do F. De nenhum dos livros dele? E gostar do Z., que está a milhas de F." Dito desta maneira, por aquela pessoa, chega a ser um calafrio de todo o tamanho, uma certidão de óbito ao mais honrado e humilde dos leitores, que não consegue deleitar-se com Eça, mas aprecia o Camilo todo, que não consegue entender-se com Agustina, mas é um honesto leitor de Cardoso Pires, que tem pudor em dizer que salta páginas inteiras de romances consagrados ou que, uns tantos, os deixou a meio.
Liberte-se o homem - e quantos como ele - pela celebração do prazer da leitura. Que é pessoal e um direito: cada um lê o que lhe apetece, sem ser obrigado a nada. Se salta umas páginas ou passa ao lado de autores "indiscutíveis", é lá com ele. E, de caminho, acabe-se lá com a peninha e a compaixão por quem não lê.
Não ler é um direito - o primeiro dos 10 direitos inalienáveis do leitor, no inventário composto por Daniel Pennac (original da Gallimard, em 1992) - a que se seguem o direito de saltar páginas, o direito de não acabar um livro, o direito de reler, o direito de ler não importa o quê, o direito de amar os "heróis" dos romances, o direito de ler não importa onde, o direito de saltar de livro em livro, o direito de ler em voz alta e o direito de não falar do que se leu.
Para conferir, "Como um romance", edição da Asa Editores, em 1993, na colecção "Pequenos prazeres", com mais 12 edições - ou reimpressões - até 2001.

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SOPA DE TOMATE

Ingredientes:
8 batatas
5 tomates médios, maduros
1 cebola
1 ovo
sal e azeite, q.b.

Cozem-se as batatas, os tomates e a cebola, em água temperada de sal, numa panela.
Retiram-se, passam-se pelo passe-vite e juntam-se à água.
Bate-se um ovo, em separado, e junta-se ao caldo.
Verte-se um fio de azeite e, mexendo sempre, dá-se uma fervura e apaga-se.

Bom apetite.

domingo, 19 de julho de 2009

Rosas de Santa Maria

A história é conhecida: ia a rainha Isabel em seus cuidados, o manto fechado e o passo um tudo-nada apressado para uma senhora da sua qualidade e futura santa. Levava umas tantas coisas para dar aos pobres, informa a “Crónica dos Frades Menores”; e assim seria.
Homem de mau génio, apesar de rei lavrador e trovador, Dinis, o marido, surpreendeu a consorte naqueles preparos, questionando-a sobre o que levava escondido entre as roupas. Rosas, era a resposta esperada pelo figurão real, sem saber onde fora buscar ideia tão estapafúrdia. Não corou a esposa, como costumava, e, segura de si, lhe calou as suspeitas, declarando: “São livros, senhor. Livros, por Santa Maria!”, posto o que tirou do regaço um Flos Sanctorum, um Livro de Horas, mais outros dois ou três livritos pequenos), passando-os ao consorte, que os recebeu, entre mostras de contentamento e de incredulidade.
Lenda, milagre ou história inventada, aqui fica.
Sabe-se que Dinis ficou na História, também, como grande cultor das letras e que Isabel a fizeram santa, prémio justo para quem, entre outros predicados, sabia que os livros têm esse grande dom de dar satisfação e apaziguar maus fígados.
De outros que andam por aí a espalhar livros se ouve falar de vez em quando. Como os biblioburros Alfa e Beto, que Luís Soriano carrega de livros (um burro carregado de livros…) para os distribuir por crianças e adultos espalhados pela selva colombiana, uma biblioteca itinerante que vai nos 10 anos de idade e que fez primeiras páginas da imprensa em todo o mundo e que dá pretexto a cerca de 14 mil entradas no Google; ou o seu equivalente venezuelano – as bibliomulas – de idêntico serviço e sucesso. E há a história caseira, de Nuno Marçal, directamente de Proença-a-Nova para o país e o mundo.
Descoberto recentemente pela comunicação escrita (“O almocreve do século XXI”, no Reconquista, de 7 de Maio de 2009; “O bibliotecário ambulante”, na revista Ler, de Maio 2009), o homem faz serviço de bibliotecário ambulante já há uns anitos, levando meios de informação, de cultura e de lazer a sítios onde não chegavam antes. Como ele explica, em palavras e imagensm, no seu net_sítio – http://opapalagui.blogspot.com/ .

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De sopas, prolongamos por mais um tempo o desafio da sopa de letras da semana passada. Com a promessa de sopas frias, proximamente.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A minha primeira e as outras

Entrou na loja, com o ar do costume, nestas ocasiões. "Aquela!", pediu, apontando-a. Tomou-lhe o peso, aninhou-a na mão direita e depois tirou-lhe a tampa, olhando-lhe o aparo em várias posições, sem pressas, como num acto íntimo. "É uma 'Insignia' , não é? ", disse timidamente e ficou-se de novo a olhar para ela. Confirmou o preço, pôs-lhe a tampa e devolveu-a ao velho senhor empregado - ainda não era desta que a levava.
Esta, uma Parker Insignia, que também existe com um banho em ouro de 23 quilates, é a caneta que ele sempre quis ter, mas nunca a comprou. Nem é pelo preço - já comprou outras muito mais caras. Só que esta, a do desenho xadrez em prata, baseado numa caixa de rapé inglesa do séc. XVII, sente-a como o ideal que se persegue, sem nunca a conseguir alcançar, transformada no objectivo de sempre.
Escrever com caneta de tinta permanente é outra coisa. É um gosto que cada um se pode dar. E que gosto!
A minha primeira foi uma outra Parker, mais modesta, recebida de oferta. Velhinha, amada e bem tratada, continuamos juntos. Houve depois, assim de memória, a Pelikan lacada a preto, a Waterman azul, uma Pilot prateada de aparo integrado, e duas Parker Duofold - a dos 50, em uso corrente, e a oferecida por amigos dois anos atrás, ainda por estrear.

Noutro tempo, as mães mais empenhadas e conscientes da transcendência que era os seus rebentos fazerem o exame do 2º grau (a 4ª classe), em mundos onde o saber ler e escrever era passaporte para uma vida melhor, compravam-lhes uma caneta, equipando, assim, os meninos para as exigências e a distinção do acto. Num desses propósitos vi eu um galfarro, lavado em lágrimas e em ânsias de morte. Uma lástima, na sua estreia como 'escrevente' com caneta de tinta. Essa, comprara-a a mãe, na véspera, na mercearia do senhor Lobato, na Rapoula do Côa. Mais valia que estivesse quieta. Há coisas que não se podem comprar na nossa mercearia de confiança.
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Sopa de letras

Ingredientes
Água, cebola e batatas q.b.
Um pacote de massa de letras
Um chisco de azeite

Confecção ao gosto. Como resultado pretende-se uma sopa que, enquanto se come, dê para formar palavras e frases na borda do prato.

domingo, 5 de julho de 2009

Os 10-20 mais, com creme de coentros

Criatura muito criteriosa, Maria Fernanda não lê qualquer coisa. "Ler, só livros bons", disse e foi-se. Abençoada.
Eu, por mim, ponho-me a pensar e não atino com os livros que levaria para a ilha deserta. Lembras-te?, é aquela pergunta clássica que fazem nas revistas quando entrevistam alguém mais dado às coisas do espírito. Não sei mesmo. Quais os livros elegíveis? Aqueles a que voltamos de vez em quando, por necessidade ou como lugar de refúgio, por isso já lidos e relidos (nem sempre da primeira à última página, por vezes só uma passagem que sabemos onde se encontra, ou simplesmente umas páginas ao acaso), ou o livro de cabeceira, que não tenho, ou aqueles que formam o tabernáculo da biblioteca pessoal? Ou os mais valiosos (e aqui será preciso discernir se o plano é o do valor material, o do valor afectivo ou outro qualquer)?
Acontece a lista dos livros incontornáveis estar sempre por fazer, por causa do que ainda não se leu - e é tanto, considerando que o conteúdo de uma Biblioteca, como a Nacional de Lisboa, se exprime em quilómetros de prateleiras (mais de trinta, no caso) e a edição em Portugal ronda os 12 mil títulos por ano.
Assim sendo, além do meu quase conterrâneo Eugénio e do Camilo, dos escritos sobre o ofício do historiador - de Duby e Braudel -, de uma colectânea de memórias de uma meia dúzia de livreiros-alfarrabistas de Lisboa e do Porto (quando existir), do Cardoso Pires e do Garcia Márquez, levarei para a ilha o que li e o que falta ler. E arranjem maneira de fazer lá chegar a nova produção editorial, que há-de alimentar tantas horas de leitura e deleite.
As listas dos "mais" têm a sua graça: "Os 10 mais de sempre da New York Review of Books" (Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare, talvez Camões, Joyce, ...), "Os 100 livros do século", "As escolhas definitivas de Bernard Pivot" ou a biblioteca ideal de fulano ou cicrano, que são verdadeiros certificados de menoridade cultural passados ao comum dos leitores, arrumando-nos, em definitivo, no submundo dos pobres ignorantes dos que não leram a obra-prima A ou outra de idêntico valor. Uma vergonha.
Ah, também se organizam listas dos livros detestáveis. Vi nove autores de prosa, e um poeta, todos portugueses, há uns 20 anos, trucidarem de uma penada a Condessa de Ségur (sim, a d'Os Desastres de Sofia, madame, digamos assim, Sophie Feodorovna Rostopchine), o Camilo da Maria da Fonte, d'O Livro Negro e das Estrelas Propícias, a Agustina (ela própria respondente) d'Os Meninos de Oiro, o Pessoa das Quadras ao Gosto Popular, a par d'O Nome da Rosa, do Kundera e do Diário, de Torga.
Mas, sobre escrever mal, nada há que se compare a Vasco Pulido Valente, que aqui reproduzo para não me esquecer: "A Agustina ofusca pela retórica, bebida na tradição portuguesa do sermão, mas tudo aquilo, descodificado, é nada, ou é uma patetice. o Virgílio Ferreira é muito mau escritor, de terceira ou quarta classe. A Natália Correia é um compêndio de escrever mal. Mas é assim, o que é que se pode esperar de um país que tem entronizado como grande escritor o Torga, o mestre Torga que anda por aí com a sua boina feito parvo? E ainda há o Lobo Antunes. A esse, francamente, nem acredito que alguém o leia. Eu que tenho uma grande embocadura, consigo ler tudo, nunca consegui ler um livro dele até ao fim". Vá lá, salva-se o Eça.
A V.P.V., glória eterna pela grande embocadura (dá cá a mão), com ressalva para a sobranceria. Grande ego, meu, tu lá sabes!
Bem. Não me chegou a vergonha de ter lido o Torga e de gostar dele. É verdade que hoje acho menos graça a coisas que idolatrei noutro tempo; e o contrário também se passa. Mas, tenho para mim que estes tipos que têm opiniões tão acabadas sobre o que é bom e o que não presta apenas querem encavacar-nos com tanta sabedoria e bom gosto. Não é o caso da Maria Fernanda, tenho a certeza.
Para as monsenhorias do bom gosto em matéria de livros, uma tirada de Camilo, para relativizar a coisa. Faça favor, senhor Castelo Branco: "Constou-me aqui há dias que a senhora Joaquina de Villalva tinha um gigo de livros velhos entre duas pipas na adega, e que as pipas, em vez de malhais de pau, assentavam sobre missais. O meu informador denomina missais todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas".
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SOPA CREME DE COENTROS

Ingredientes:
750 g. de batatas
1 molho de coentros
2 dentes de alho
1 cebola
1 dl. de azeite
1 l. de água
sal q.b.

Descasque as batatas, corte-as e lave-as.
Numa panela, com cerca de 1 litro de água, leve-as a cozer juntamente com os alhos, os coentros, a cebola e o azeite.
Depois de tudo cozido, passe tudo com a batedeira.
Rectifique de sal e está pronto a comer.

domingo, 28 de junho de 2009

Pelo cheiro é que vamos (e com Juliana)

O acto de encher o depósito de uma caneta de tinta permanente tem o fascínio da alquimia, disse o homem. Que continuou, como se explicasse: tira-se a tampa da caneta, puxa-se o êmbolo até ao fundo, mergulha-se o aparo no tinteiro e então roda-se a pirueta ligada ao êmbolo para o lado direito, entre os dedos polegar e indicador, até prender. Então, para o depósito não ficar demasiado cheio, roda-se um pouco em sentido contrário, até cair um pingo de tinta no tinteiro, e de novo, no sentido contrário, até prender. Com um lenço de papel, ou um trapo, limpa-se cuidadosamente a parte da caneta que mergulhou no tinteiro e a caneta está, de novo, pronta para funções escreventes.
Incapaz de desligar o circuito da atenção, acompanhei o homem numa curiosa incursão em terrenos tecnologicamente mais evoluídos: Há uns tempos - prosseguiu ele - inventaram as recargas para canetas, uma tecnologia limpa, que não suja as mãos, fundada no princípio do usa/deita fora. Também tenho canetas desta geração tecnológica, que, no entanto, devolvi à pureza dos princípios - arranjei uma seringa e, quando a recarga está vazia, encho-a no velho tinteiro e com ela recarrego a recarga. Por razões que eu cá sei, concluiu.
Certo é que o homem se delicia naquele acto, tão simples, mas pelos vistos de tamanha transcendência para ele. Assegura quem assistiu ao acto, como eu assisti, que o simplório o faz, não por sovinice extrema, ou instinto primário de poupança, mas por razões existenciais - o prazer do tacto na preparação do instrumental de escrever, o gosto de ver a mancha de tinta a espalhar-se no papel ou no pano com que se limpa a caneta (que, tantas vezes, pinta de azul os dedos das mãos); mas também, por causa do cheiro da tinta, que o uso (adequado, corrente) das recargas impede de se manifestar. Sem esses preliminares, creio-o incapaz de escrever coisa que se leia.

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Sopa Juliana

Ingredientes:
3 batatas médias
3 cebolas
3 cenouras
2 cabeças de nabo
1 beterraba
1/2 couve
2 ramas de aipo
água q.b.
orégãos q.b.
azeite q.b.
sal q.b.

Cortar os legumes em juliana (às tiras fininhas).
Enquanto isso, ponha a água ao lume, numa panela, até ferver.
Deite os legumes na água a ferver, deixando cozer em lume branco, durante 20 minutos, até os legumes estarem cozidos e o caldo relativamente espesso.
Retire do lume, acrescentando então os orégãos, o sal e um fio de azeite.

domingo, 21 de junho de 2009

As bibliotecas de Vieira da Silva

Passaram, em 2008, os 100 anos do nascimento de Maria Helena Vieirada Silva. Autora de uma extensa obra de pintura (o "catalogue raisonné" de 1998 regista 3.486 obras), MHVS foi mais estrangeira do que portuguesa (o regime de Salazar tratou-a bem mal, como se sabe, recusando-lhe a nacionalidade). Uma amostra da obra da artista (e do marido, Arpad Szenes, nascido húngaro) pode ser vista em Lisboa, no museu Arpad Szenes-Vieira da Silva, na lindíssima Praça das Amoreiras, próxima do Largo do Rato.
Falemos de bibliotecas, a propósito de Vieira. Primeira, a biblioteca das cores de Maria Helena - os azuis, os vermelhos, os verdes, os brancos ..., uma paleta conferível na obra e declarada num testamento aos amigos: "deixo aos meus amigos / um azul cerúleo para voar bem alto / um azul cobalto para a felicidade..." e as outras cores, como se pode ler mais à frente.
Segunda, a biblioteca dos retratos - cinquenta e tal anos de retratos de Vieira por Arpad, a pessoa que melhor conhecia a pintora por fora e por dentro, como referia a pintora. Vejam-se alguns desses retratos-poemas em Retratos de Vieira por Arpad Szenes, uma edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de 1983, que se vende por aí.
Terceira, a biblioteca de temas da artista - a música, os retratos de René Char, a luz, o movimento, a guerra, as cidades.
Quarta, e última, os lugares onde se arrumam memórias, espaços de satisfação e descoberta - as bibliotecas propriamente ditas, que MHVS pintou.
Esta, a "Bibliothèque en feu" (1974), pertencente ao Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão, em Lisboa, é uma das mais conhecidas.

Mas há muitas mais - ao todo, mais de trinta, para que conste - que Vieira da Silva pintou, desde os anos de 1930, sendo as últimas da década de 1980: a "Biblioteca do Alberto", do poeta Alberto de Lacerda, entenda-se, de 1982, e a "Bibliotheca", de 1984, incluida na edição do celebrado "De bibliotheca", de Umberto Eco (Caen, Ed. l'Echoppe, 1986).
Pelo caminho, bibliotecas de muitas cores e feitios, hoje dispersas por muitas "mãos", de que aqui se dá notícia de algumas - a "Bibliothèque" (1949, Paris, MNAM), com uma mancha predominantemente vermelha, uma biblioteca humorística ("L'autre bibliothèque humoristique", 1947-1948, FASVS), outra, de bolso ("Bibliothèque de poche", 1960-1965, col. privada).
A fechar, em corpo inteiro, uma biblioteca na árvore
a (chamemos-lhes assim) biblioteca de Sofia
e a biblioteca Naggar (designação igualmente não oficial), que, sendo por agora a minha preferida, vou chamar "a minha biblioteca".
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As cores de Vieira:
"Eu tenho cores de Verão e cores de Inverno. Quando está calor, gosto de pintar em azul, em verde, em branco. O branco, aliás, posso usá-lo durante todo o ano. E quando está frio, gosto do vermelho. 'La Bibliothèque rouge', por exemplo, comecei-o em Paris, lentamente, depois vim para aqui, para Yèvres, no mês de Maio, estava frio, continuei com ele, até que um belo dia desatou a fazer calor e eu virei-o para a parede. Terminei-o no Outono, quando principiei a desejar o calor" (MHVS, in Anne Philipe - O fulgor da luz. Lisboa: Ed. Rolim, s/d).

TESTAMENTO DE VIEIRA:
Deixo aos meus amigos
um azul ceráleo para voar bem alto
um azul cobalto para a felicidade
um azul ultramarino para estimular o espírito
um vermelhão para que o sangue circule alegremente
um verde musgo para acalmar os nervos
um amarelo de ouro: riqueza
um violeta cobalto para o devaneio
uma garança porque deixa ouvir o violoncelo
um amarelo bário: ficção científica, brilho, esplendor
um ocre amarelo para aceitar a terra
um verde veronese para a memória da Primavera
um índigo para que o espírito de ajuste à tempestade
um laranja para treinar a vista de um limoeiro ao longe
um amarelo limão para a graça
um branco puro: pureza
terra de Siena natural: a transmutação do ouro
um negro sumptuoso para ver Ticiano
uma terra de sonbra natural para aceitar melhor a melancolia negra
uma terra de Siena queimada para o sentimento da durabilidade.
(in Veira da Silva nas colecções internacionais. Lisboa: Assirio & Alvim e FASVS, 2004).
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Obras reproduzidas de:
Bibliothèque en feu: CAMJAP, Lisboa.
Biblioteca na árvore: Vieira da Silva nas colecções internacionais. Lisboa: Assirio & Alvim e FASVS, 2004.
Biblioteca de Sofia: Lassigne, Jacques; Weelen - Vieira da Silva. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d (1993?).
Biblioteca de Naggar: Roy, Claude. Vieira da Silva. Lisboa: Publicações Europa-América, 1988.

Siglas:
MHVS = Maria Helena Vieira da Silva
FASVS = Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva
Paris, MNAM = Musée National d'Art Moderne de Paris
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Com tanta substância, supra, hoje não há sopa.

domingo, 14 de junho de 2009

O ingrato T. Sousa (a fazer boca para a sopa de alho)

O meu amigo T. Sousa foi o ladrão de livros mais ingrato que me foi dado conhecer. Sem saber, benza-o Deus, que já vi coisas piores.

Nas três montras enormes da livraria, um único título – “Uma coisa em forma de assim”. Parecia que tinham lá posto a tiragem inteira. Sem exagero, estavam ali mais de 100 exemplares, numa monotonia enjoativa de branco e azul, em três filas sobrepostas, a toda a largura das vitrinas. Sem dúvida, chamativas. Do lado de fora, contemplando a obra, o senhor autor, que se dizia ser, também, o proprietário da livraria (eu conhecia-o de vista, mas o T. Sousa, não).

Quando saíamos dessa tal livraria, é que deparámos com aquela obra-prima de vitrinismo. Ao pôr o pé na rua, o T. Sousa não se conteve: “Uma coisa em forma de assim? Quem é que vai lembrar de uma m. assim?!” E ria, com gosto, o meu amigo, ao modo dos ignorantes convencidos. E acrescentou, quando passávamos pelo O’Neil, alto e bom som, como antes, na linguagem crua que usam certos beirões: “Uma coisa em forma de assim. Ainda gostava de encontrar o filho da p. que escreveu isto”.

Insultado praticamente na cara, pelo energúmeno, o autor (que aguentou, firme) não deixaria de remoer intimamente umas sábias frases que escrevera, a propósito, no tal livrinho: “certa idiotia é susceptível de conferir ao idiota seu proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si própria que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade”. Estavam quites, portanto, Sousa e O'Neil.

Desconhecendo o ajuste de contas, admirei por instantes a contenção de que o autor-proprietário fora capaz. Quando, já bem afastados, consegui identificar ao meu amigo quem era quem no episódio de minutos antes, a risota chalaceira ainda redobrou. Ele ria, ria, ria.

Quando se conseguiu conter, para minha surpresa, de dentro do blusão impermeável que trazia vestido, foram saindo, um a seguir ao outro, os livros (por junto, uns 5 ou 6) que, com o maior dos à-vontades, o idiota ingrato roubara na livraria do senhor da "coisa".

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SOPA DE ALHO

Ingredientes

1 cabeça de alhos (50 g.)

50 g. de margarina

1 litro de água

2 gemas de ovos

4 fatias finas de pão

sal q.b.

Separe e descasque os dentes de alho. Coza-os na água, em panela normal ou de pressão. Entretanto, frite as fatias de pão, numa frigideira, em metade da margarina, e coloque-as no fundo de uma terrina. Passe a sopa. Fora do lume, junte à sopa as gemas de ovos e o resto da margarina, mexendo bem. Deite na terrina e sirva.

domingo, 7 de junho de 2009

O roubo de um saco de livros (e o consolo de uma sopa de castanhas)

Quem nunca roubou, fosse coisa de valor, ou uma insignificância, que se levante! Depois, pode atirar a primeira pedra.
… Vêem alguém de pé? Eu também não. Nem um só, para amostra.
No mundo dos consumidores de livros - coleccionadores, bibliófilos ou simples leitores - encontrar alguém que nunca tenha fanado um livrito é coisa bastante rara. E, para que conste, ser uma dessas avis rara, até nem é o melhor cartão de visita.
Não estou a falar dos que se "esquecem" de devolver o livro que (quantas vezes muito contrariados) emprestámos. Isso é um expediente de sornas, indigno e condenável a todos os títulos. Também não é o caso dos profissionais do roubo, nem daqueles cidadãos de superior honestidade cujos nomes aparecem associados a grandes feitos nesta matéria (se querem saber, gente da estirpe de um general de Napoleão Bonaparte, que incorporou a Bíblia dos Jerónimos na biblioteca da sua casa, em Paris, ou um tal Ataíde que, nos anos de 1940, fez um roubo muito sério na Biblioteca Nacional de Lisboa, avaliado, ao tempo, numas dezenas de milhar de contos). Como já se percebeu, falo de coisas prosaicas, do livro que se meteu no bolso enquanto se dá a volta pelos escaparates e estantes de uma livraria (sendo de uma biblioteca, já estamos a falar de outra coisa - é uma opinião); falo de pecadilhos menores, os de toda a gente.
Para que conste, ZéTê, que nunca roubou um livro, é a minha excepção.

Foi há uns 20 anos, em mil novecentos e oitenta e poucos. Pela Europa, a generalidade das lojas (as livrarias incluídas) protegiam-se com sistemas anti-roubo; mas o ZéTê não sabia. “Entrei naquela livraria e não queria acreditar”, contou-me ele. “Uma livraria de 3 pisos, onde havia, literalmente... tudo! Na cave, na secção de História, encontravas todos os livros que estavam em todas as bibliografias da Faculdade, que nunca ninguém tinha ‘cheirado’, por estarem indisponíveis em Portugal e por não ser fácil comprá-los directamente". O meu amigo fez uma pausa; e eu, calado. Ele prosseguiu: "Fui saltando de um para outro; durante 4 horas, folheei dezenas de livros. Eram todos bons, interessavam-me todos.
Quando ouvi o sinal de que a livraria ia fechar, concentrei-me no monte dos livros que tinha seleccionado - eram muitos. Num cálculo rápido, concluí que os ordenados dos próximos três meses não seriam suficientes para pagar tanto livro.
Não me lembrava de ter visto nenhum empregado, o tempo todo, naquele piso. Num raciocínio rápido, meti metade dos livros no saco que trazia ao ombro e comecei a subir as escadas. A ideia era, uma vez alcançado o rés-do-chão, sair como quem não quer a coisa. Ninguém ia dar por nada e a causa era boa.
A meio da escada, esmoreci; tanta facilidade era demais. Na ausência de risco, voltei atrás, abri o saco e deixei lá os livros todos."

Verdade, verdadinha, a minha excepção, o ZéTê, esteve a pontos de conseguir o impossível - o mais ingénuo dos frequentadores da principal livraria do boulevard Saint Michel, em Paris, ser preso por tentativa de roubo de um saco de livros sobre a história medieval francesa. Admiro-o por isso.
Não ganhou honra, nem glória, em terras de França; mas, continuamos a acreditar que, um dias destes, ele nos vai aparecer aí com uma grande surpresa.
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Sopa das castanhas

300 g de castanhas piladas
50 g de miolo de pão
4 fatias de pão
Salsa e coentros (semente)
Sal e pimenta
Folhas de hortelã
2 l de água
4 colheres de vinagre
3 colheres de mel

Coza as castanhas em água e sal.
Entretanto, esmague num almofariz a salsa picada e as sementes de coentros.
Junte o miolo de pão e continue a esmagar tudo, juntando o vinagre, até fazer uma spécie de papa.
As castanhas, logo que cozidas, devem ser retiradas do lume e reduzidas a puré, com a ajuda de um garfo.
Junte tudo na água em que cozeu as castanhas, adicione um pouco de pimenta (muito a fugir) e corrija de sal.
A seguir, deixe ferver alguns minutos, juntando depois o mel e mexendo muito bem, para integrar tudo.
Sirva em tijelas, onde colocou previamente 2 ou 3 folhas de hortelã.

domingo, 31 de maio de 2009

A missa do Paulo, do Sobral

No Seminário do Tortosendo, o senhor "padre prefeito" era pessoa de se temer. Grande, de cabelos cortados ao estilo castrense, olhar de viés pronto à reprimenda e ao castigo, o porte muito militar. Questão de feito; ou de estilo profissional, na convicção de a rédea curta ser o tratamento adequado para jovens em mudança de voz. No caso, mais de uma centena de galfarros.
A prática corrente na casa era a designação de um par dessas futuras vocações, quartanistas, que haviam de cumprir, durante um trimestre lectivo, funções de sacristão. Quem entrava, aprendia com quem saía, que a passagem do testemunho tinha os seus quês - tratar das hóstias , abastecer as galhetas de água e vinho para as missas (4 a 6, por dia, tantos eram os padres em exercício), preparar a paramentaria para os ofícios litúrgicos e ajudar à missa, pois então, que se dizia ainda em latim. Assim fez o Paulo, do Sobral, na passagem do testemunho; e lá recomendou muito bem a partida obrigatória que os novos recrutas haveriam de pregar (na aparentemente maior das inocências) ao "padre prefeito".
Para dizerem missa, os padres põem várias peças - uma alva, de linho, que lhes desce até aos pés, cingida por um cordão na cintura, permitindo ajustar-lhe a altura, chamado cíngulo, uma estola ao pescoço, que cruza o peito e se cinge ao nível da cintura; por cima de tudo, a casula, da cor correspondente ao tempo litúrgico e uma grande cruz nas costas, que enfia pela cabeça.
No guarda-roupa daquele instituto religioso havia uma casula verde, feia, o tecido muito rapadinho e especialmente pequena. Em padre de baixa estatura, enfim, passava; mas não ia especialmente bem com a altura do "padre prefeito", a quem ficava visivelmente curta. No primeiro dia do Tempo Comum, que é quando se usa paramentaria verde, quando acabou de se vestir para a missa, na sacristia, o "padre perfeito" teve um ataque de fúria. Risos para dentro dos dois "sacristas", ar de "anjinho que não percebe" para fora, o ridículo de um padre furibundo a cair da roupa ali mesmo à sua frente.
A sentença veio rápida e fulminante: tendo atingido os limites da paciência (a cena repetia-se em cada nova incorporação de sacristães), o "padre prefeito" mandou que a casula fosse queimada nesse mesmo dia.
Os dois quartanistas ouviram, sem acreditar - aquelas cabecinhas nunca tinham imaginado que se pudessem queimar vestimentas de missa. "Hoje mesmo, sem falta", repetiu o padre-calmeirão, acrescentando que nunca mais queria ver a dita peça à sua frente.
A queima (que o mais jovem dos infantes sentira, primeiro, como auto de fé sacrílego, aceitando-a, depois, com uma certa incomodidade) fez-se nos terrenos da quinta anexa. O caminho para lá foi feito em procissão: oficiante, o Paulo, do Sobral, à frente, com a casula vestida e de mãos postas; atrás, segurando a "cauda", os dois sacristães em exercício, todos a cantar o "Avé, avé, avé Maria".
Para que conste: a peça ardeu muito bem, deixando um montinho de cinza de todo insignificante. Em boa verdade, não se perdeu grande coisa; apenas, a possibilidade de, pelo menos uma vez no ano, a "infantaria" poder, através dos seus "sacristas", pregar uma partida inocente ao padre-repressor. Soubessem eles a humilhação que o prefeito sentia ao ver-se com aquela peça vestida...

domingo, 24 de maio de 2009

O leitor omnívoro (depois, sopa de rama de rabanetes, que se faz em 20 minutos)

Ler foi, desde muito cedo, um acto compulsivo que ele exerceu com a mesma avidez - e o mesmo gosto, benza-o Deus - em tudo quanto tinha letras: uma pedra com uma inscrição gravada, o rótulo de uma embalagem de margarina ou de um frasco de xarope, um livro, um cartaz, o jornal da paróquia ou uma revista missionária, um panfleto anticomunista, o papel que embrulhava os rebuçados, um manifesto sindical, uma carta de alguém conhecido ou de um estranho, a anotação nas costas de uma fotografia ou um pedaço de jornal, as letrinhas pequeninas com as instruções para preenchimento de um impresso, um decreto-lei ou o edital de uma entidade pública, a "literatura inclusa" de um medicamento para o reumático, a página impressa de um missal romano, em latim, o manual do cozinheiro prático, o Livro de São Cipriano ou os Evangelhos apócrifos, o Borda d'Água ou Os Manuscritos do Mar Morto, o Antigo como o Novo Testamento ou o Livro da Terceira Classe, A Bola ou um Flos Sanctorum, o Sans Famille, A Marca dos Avelares ou o Luta Popular, a contestação feita por um advogado de segunda categoria, como o Catálogo de Livros Seleccionados d'O Mundo do Livro, um exemplar raro da edição princeps d'Os Lusíadas ou o traslado setecentista de um acto notarial de quatrocentos anos antes. Enfim, o que for e o que seja, qual omnívoro das letras a quem, ainda por cima, tudo o que come faz proveito.
A sua entrada no mundo das letras não foi, sequer, tão prematura quanto isso; deu-se num tempo de penúria extrema de material sobre que pudesse exercer-se a compulsão de ler. E foi dessa forma que o pouco que havia foi lido tantas vezes que se lhe imprimiu na memória profunda, inapagável - o I.N.R.I. da cruz dos Redentoristas, na igreja matriz de São Vicente, depois repetido em cada cruz de Cristo crucificado (de que haveria, muito depois, de descobrir o significado), o J.A.E. da ordem em todos os marcos e placas da estrada nº 352, aquele escrito ao lado do precário na barbearia do Zé Fiambre que dizia "Cuspir no chão é feia acção", com que se pretendia travar esse bárbaro procedimento dos fregueses, em regra, analfabetos; e as páginas - quase todas - dos livros da segunda e da terceira classes, em especial (pela musicalidade e pela temática campestre) o poema que começava assim: "Palram pega e papagaio/E cacareja a galinha/Os ternos pombos arrulham/Geme a rola inocentinha.//Muge a vaca, berra o touro/Ouvem-se os porcos grunhir/Libando o suco das flores/Costuma a abelha zumbir".
Em casa não havia nada que se lesse, fora os livros da escola, lidos e relidos; fora de casa, era o mesmo - livros não havia e jornais eram só os que vinham a embrulhar algum peixe que se comprava à Palmira Sardinheira, ao Maiaca ou aos Pinuras (por junto, com os Chamiços, as linhagens peixeiras da terra) ou as meias folhas com que, na mercearia, embrulhavam as postas de bacalhau e o sabão. Jornais esses - digamos, pedaços de jornal - que haviam de ser esquadrinhados e lidos, tintim por tintim por um ser insaciável de leitura: neste, um título truncado sobre uma tempestade que fez centenas de mortos na região de ... e dois parágrafos e prosa opinativa sobre uma matéria incompreensível; no verso, o calendário das partidas e chegadas de navios no porto de Lisboa; num outro, ao acaso, o relatório das acções desenvolvidas pela tropa portuguesa na Província de Angola, com o número das baixas infligidas ao inimigo e quatro linhas com os nomes dos soldados portugueses mortos (sempre em acidentes com viaturas), tendo no verso a fotografia, sem legenda, de uma procissão algures no mundo católico. Era assim, por regra - prosas sem os necessários princípio-meio-e-fim, pedaços de frases parágrafos que se liam sem se saber como começavam, outros como acabavam.
Mas, não eram esses pormenores suficientes para inibir, no bom leitor, a compulsão para ler. A tal ponto que, num tempo em que os homens, como as bestas, defecavam pelos campos, acumulando em certos sítios pedaços de notícias e de outras prosas derramadas em pedaços de jornal usados como papel higiénico, muito leu o bom leitor-omnívoro nos muitos momentos em que a humanal e prosaica fisiologia o obrigou a agachar-se nesses locais.
(10 de Agosto de 2005)
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Caldo de Rama de Rabanetes

Ingredientes
Rama frescas (talo e folhas de um molho de rabanetes)

2 cebolas
3 colheres de sopa de azeite
1,5 l. de água
Sal q.b.

Lave a rama dos rabanetes e corte-a aos bocados; faça o mesmo às cebolas.
Deite-as com cuidado numa panela, onde colocou previamente o azeite.
Leve a lume brando, durante 5 minutos, sem tapar a panela.
Ponha a ferver, à parte, a água, temperada com sal. Quando levantar fervura, retire-a e derrame-a sobre os legumes. Tape e deixe cozer durante 10 minutos.

domingo, 17 de maio de 2009

Nas alturas do Cristo-Rei, em Almada


17 de Maio de 2009 foi dia do cinquentenário da inauguração do monumento a Cristo-Rei, em Almada. Missas e procissões, muita gente como há cinquenta anos.
Umas imagens de quem lá esteve.











No próximo mês, a publicação de "Por alturas do Cristo-Rei, em Almada", da autoria do biblio-servo que isto escreve, uma edição da Câmara de Almada. Com a surpresa de alguns episódios menos conhecidos, como se verá a seu tempo.
Até lá.

domingo, 10 de maio de 2009

Ler em pé (como introdução à sopa de batata)

O leitor praticante é um dependente e sabe-se quanta gente de bem caiu no vício, aparentemente sem lhe poder fugir, como outros dependem do álcool, do tabaco, da depressão. Para estes, a humana sabedoria inventou tratamentos e programas de cura, tratando-os como doentes; àquele, o dos livros, não se chegou a tanto e deixam-no andar por aí, se é que dão por ele!
É sabido que, ler demais, faz mal aos olhos; em miúdo e adolescente, apontavam-me os que lidavam com letras e números – todos usavam óculos, sinal de mau uso do primeiro dos sentidos. Havia então – não sei se ainda há – um espécime característico, referenciado com certo desdém, com mistura de comiseração e de vade retro: o que está sempre a ler, mesmo nas circunstâncias mais despropositadas e nos momentos menos próprios. Livrasse Deus um homem de ter um filho assim!
Um vulgar leitor que não tenha, sequer, atingido, o grau 3 da dependência, pratica o acto no maior descuido: quantas páginas se lêem, na rua, de noite, debaixo de um poste de iluminação pública ou aproveitando a luz de uma montra iluminada, enquanto se espera por alguém.

Noutro tempo, um certo conhecido meu, pai de filhas, lia romances inteiros numa livraria de Lisboa onde ia na hora do almoço, à razão de dez páginas por dia, como sobremesa comida em pé. De tempos a tempos, mudava de fornecedor. Havia casas em que o ignoravam e, noutras, fingiam não dar por ele. Altas estratégias! Pelo seu lado, consumo, sim, mas sem custos – por regra, usava um livro, digamos durante 20 ou trinta dias, sem o depreciar, devolvendo-o à estante impecável, como se nunca tivesse sido aberto. “Havia lá alguma razão para alguém embirrar?”, confessava Orlando. “Até um dia…”
Chegou a temer o pior, quando viu o dono do estabelecimento vir para ele, na livraria. Num ápice, estava o homem a elogiar-lhe a gentileza de quem cumprimenta sempre ao chegar e se despede todos os dias com o “até amanhã” da ordem, o seu gosto de ler e o cuidado com que tratava os livros.
Ouvido aquele intróito, era tempo de receber a bordoada! “Mas, nada. Não disse mais nada e foi lá para dentro; quando saí, ainda com livro seguramente para mais uma semana, não tive ninguém a quem dizer “até amanhã”.
Aparentando, no dia seguinte, passar por ali à procura de nada, Orlando deu com a livraria fechada. Por causa das dívidas, dizia-se à boca cheia; mas o Lê-em-Pé quis antes acreditar na versão (tudo indica posta a circular pelo proprietário) de que a polícia ordenara o encerramento depois de aí ter feito uma grande apreensão de livros.

Bom homem, aquele, que chegou a pensar que o comércio dos livros lhe podia dar de comer!

Abril 2006
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SOPA DE BATATA
Ingredientes
500 g. de batatas
3 cebolas
1 dl. de azeite
1 ramo de salsa
Folhas de hortelã
Água
Pimenta (para quem goste)
Sal q.b.
Corte as cebolas em rodelas finas e refogue no azeite.
Quando o refogado estiver pronto, junte as batatas cortadas às rodelas e salsa, cobrindo tudo com água suficiente para cozer.
Tempere com sal, a gosto, sem exagerar, e deixe cozer.
No fundo de uma terrina, coloque fatias de pão e por cima as folhas de hortelã.
Deite por cima o caldo com as batatas.
Tape e deixe estar um pouco. Depois, sirva.

domingo, 3 de maio de 2009

De como o mano borrou a escrita (depois, caldo de couve portuguesa)

A mim, agora, os versos saem-me em jorros, sem esforço, como uma diarreia.
António Ramos Rosa, na casa dos oitenta anos, em entrevista ao JL.

O mano foi excepcionalmente fluente na arte da escrita, que eu saiba pelo menos uma vez. Ele teria sete anos, estava na primeira classe, e eu mais dois.
Quando, naquela tarde de sol, nos viu de regresso a casa umas duas horas mais cedo do que era costume, a mãe não podia acreditar - as calças do benjamim escritas de cima a baixo e os sapatos também.
Saímos da escola à pressa, a minha mão na dele, a espaços; a professora tinha dado com ele muito parado, descobrindo depois que ele estava em urgências de "ir lá fora", sem pedir. Quando descíamos as escadas em direcção aos sanitários públicos - que na altura já os havia, precários, um pouco distantes dali, na Fonte Velha - a urgência sempre em crescendo, sem dar tréguas, a máquina intestinal do mano em roda livre, qual fenómeno da natureza, incontrolável pelos mecanismos da vontade ou da vergonha. "Aguentas?", foi a pergunta repetida até três quartos do caminho andado. Mas, quando o lugar de destino já estava mesmo ali, romperam-se as guardas do pobre, incapazes de conter por mais tempo a revolução interna que nos levara àquela parte.
Ao menos não havia gente por perto. A escritura foi obra de escassos segundos, em andamento lento, mas contínuo.
Impossível eliminar os frutos daquela abundância, traduzindo, limpar o fato e o calçado do agente e vítima de tal desmando. A única solução era fazer, ligeiros, o caminho de casa, por ruas e caminhos menos propícios a encontros, o infante em porte da maior compostura e dignidade, o acompanhante controlando uns insinuantes assomos de riso, sempre que lhe vinha à cabeça a judiciosa formulação, em palavras, dos momentos antecedentes - o mano borrara a escrita toda!

Agosto 2005
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Caldo de couve portuguesa

Ingredientes
250 g de toucinho entremeado
250 g de batatas cortadas aos quadrados
1 couve portuguesa cortada às tiras
1 cebola
2 colheres de azeite
1 dente de alho
Sal q.b.

Coze-se a carne e a cebola descascada, mas inteira, numa panela com água.
Quando a carne estiver cozida, retira-se a cebola.
Juntam-se as batatas, a couve, o alho, o azeite e tempera-se com sal.
Deixa-se cozer.
Antes de servir, retiram-se as batatas e desfazem-se com um garfo, juntando-as de seguida ao caldo.

domingo, 26 de abril de 2009

A mala de Joaquim Maia, livreiro

Joaquim Maia se chamava o livreiro; não tinha loja aberta – uma arrumação, se tanto, esconsa, ali no bairro de Santos, a Palhavã, em Lisboa, nos idos de 1970, quando o tempo da “evolução na continuidade” do Professor Marcello já fora e “o Botas” já batera as suas. Os dias, dividia-os o homem entre os armazéns das casas editoras e as empresas onde trabalhavam as suas dezenas de fregueses.
De tempos a tempos, lá nos aprecia o amigo Maia, levando algum livro encomendado na visita anterior e as capas das mais recentes novidades editoriais. Os actos decorriam ali ao balcão, ele do lado de fora, como se fosse um cliente, e nós – uns dois ou três, revezando-nos – da parte de dentro, sem abandonar o espaço de trabalho.
Feitas as entregas e recolhidas as novas encomendas, passava-se ao terceiro acto, protagonizado por um ou dois livros extraídos do fundo da enorme pasta do livreiro – proibidos, com a edição já apreendida pela polícia ou a caminho de o ser. Os exemplares disponíveis ficavam sempre lá, que, em tempos tais, proibido era sinónimo de vendido.
Dessas colheitas ficaram-me um Canto Novo, com versos do José Afonso-cantor, e um seu meio-irmão com título de O nosso amargo Cancioneiro, reunindo a poesia cantada fora do circuito legal, e outras coisas pouco alinhadas, como romances do Alves Redol, as peças do Bernardo Santareno, a nada desalinhada prosa do José Gomes Ferreira, as "Novas Cartas Portuguesas", das Marias Teresa Horta, Isabel Barreno e Velho da Costa, o "Maria de Nazaré", do padre Mário de Oliveira em crise de vocação, os “Cadernos Dom Quixote” todos, a "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica", com algumas pérolas logo memorizadas pela malta, para serem repetidas até fartar (o Botto do “Nunca te foram ao c.,/ nem nas perninhas, …”, o mais citado de todos, a propósito, ou não). O infalível engodo do “proibido” até me levou a comprar um desinteressante e tedioso "O Pavilhão dos Cancerosos" e um "Portugal e o Futuro", que não cheguei a ler.
Visita do livreiro sem terceiro acto soava a meia desfeita. Isso explica, em grande parte, a falência, depois do 25 de Abril de 1974, do modelo de negócio que, durante anos, dera de comer à família Maia e assegurara à malta a leitura de cada dia. Com consequências, está bem de ver: o livreiro estabeleceu-se, passando a vender cromos, cadernetas, pastilhas e congéneres; entre a freguesia, parte dela nunca mais comprou um livro que fosse; quanto ao escriba, perdeu de vez a vergonha e passou a frequentar as livrarias.
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É sempre fastidiosa – mas educativa – a leitura das listas dos livros proibidos. O regime anterior a 25 de Abril de 1974 (a lista completa está em Livros proibidos no regime fascista, publicada em 1981), proibiu Marx e os “patriarcas socialistas”, mas também Bertrand Russel, Flaubert, La Fontaine, Rabelais, Steinbeck, Graciliano Ramos e Jorge Amado, Torga e muitos portugueses, sendo Tomaz da Fonseca o mais proibido de todos. Até uma "História de Portugal", versão vulgata, do António Sérgio, e um "Vimaranis Monumenta Historica", do conservador Alfredo Pimenta, muito lixo, pornográfico ou não, o José Vilhena incluído.

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Sopa de nabiças

Ingredientes
2 l. de água
1 molho de nabiças
0,5 dl. de azeite
500 g. de batatas
1 cebola
Sal q.b.

Cozem-se as batatas e a cebola na água previamente temperada com sal.
Quando estiverem cozidas, reduzem-se a puré, com a batedeira.
Leva-se novamente ao lume e, quando levantar fervura, juntam-se as folhas de nabiça, previamente lavadas, e o azeite.
Deixa-se cozer durante 10 minutos e está pronta a comer.

domingo, 19 de abril de 2009

Ratos de biblioteca

“Senta-te e escreve o que te vou dizer”, dizia a mãe em voz de comando que não admitia réplica, tão pouco hesitação – é fazer logo e perguntar depois!

Ora essa! Como se o escrever exigisse posição sentada! Hemingway, o de "Fiesta", d' "O Lobo do Mar" e de "Paris é uma Festa" - os meus preferidos de toda a sua obra) - escrevia de pé e não consta que lhe faltasse onde se sentar. E não foi o único escritor com esse hábito, que eu saiba.

Essa gente da escrita tem as manias de qualquer um – numa certa parte da sua vida, Borges costumava guardar o dinheiro entre as páginas dos livros (em sua casa havia-os por todo o lado), a biblioteca convertida, assim, em banco privado desse homem cuja vida se plasma num pano de fundo feito de livros, como leitor, escritor ou como Guarda-Mor dos Livros da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, apesar disso capaz de conservar somente o que valia a pena (mesmo tratando-se de livros, que uma biblioteca não é um depósito de ferro-velho): Jorge Luís desfazia-se dos livros que não lhe interessavam, “esquecendo-se” deles onde calhava, em cafés ou no banco de um jardim.


O meu amigo A.B. comprava livros como fazia as compras lá para casa, sem distinguir o necessário do supérfluo: via, comprava, por impulso e sempre em quantidade que se visse – eu via-o mais como compulsivo e, confesso, no que respeita aos livros, essa sua atitude compungia-me. Numa das últimas em que me exibiu os resultados do seu mais recente raide predador, umas duas dezenas de volumes, de temática variada, concluiu que já ia em mais de oito mil volumes! Verdade se diga que cheguei a ter inveja do personagem – o dinheiro dele na minha mão daria outros frutos mais interessantes, menos quantidade, mas, seguramente, uma mão cheia de “coisas boas” – uns quantos alfarrábios dos tais, só um, acaso, muito suado e longamente desejado, que, desses, cada um tem os seus.

A.B. tinha o fascínio pela quantidade – de livros, quantos mais, melhor, como os contos de réis. Por aquele caminho, ia convertendo a casa da Cruz de Pau numa “Biblioteca do Congresso”: não os mais de 100 milhões de espécies da Library of Congress, entre manuscritos, mapas, fotografias e outros materiais não livro, 10 mil incorporações diárias; “uma coisa mais pequena, mas, ainda assim, “suficientemente grande para o nosso meio” (palavra do senhor).

Pensasse ele, a sério, nestes números e, decerto, se haveria de converter à sabedoria de Don Rigoberto (Mario Vargas Llosa – Los Cuadernos de Don Rigoberto, 1997), possuidor de quatro mil livros e cem imagens, entre litografias, xilogravuras, desenhos, óleos, aguarelas – nem mais um ou uma, cada nova aquisição determinando a saída de um exemplar existente, inflexível quanto ao número de espécies das suas biblioteca e pinacoteca. Os livros e gravuras rejeitados, Don Rigoberto, o das orelhas grandes, queimava-os, para não sujeitar outros a lê-los e a vê-las.
Não lhe cabendo em casa tantos livros, A.B. fez uma selecção dos menos interessantes e, sem a sabedoria de Borges, nem a coragem radical de Don Rigoberto, levou-os para uma sua casa, para os lados de Sintra, e lá os deixou entregues a ninguém – mais rigorosamente, aos ratos. Está averiguado que foi a humidade, o pó e a bicharada que enterraram as hipóteses de a Cruz de Pau vir a ter o nome escrito numa futura lista das maiores bibliotecas do mundo. Consta, por outro lado, que é do acto do meu amigo que procede o nascimento da primeira comunidade de ratos de biblioteca da encosta norte da Serra de Sintra.

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SOPA DE BELDROEGAS



Ingredientes:

4 alhos franceses

4 cenouras

2 cebolas

1 molho de beldroegas

2 colheres de sopa de azeite

Sal q.b.



Cortam-se os alhos franceses, as cebolas e as cenouras.

Levam-se ao lume no azeite, deixando refogar em lume brando.

Junta-se 1,5 litros de água morna, tempera-se com sal e deixa-se cozer.

Quando estiver quase cozido, juntam-se as beldroegas cortadas.

domingo, 12 de abril de 2009

Já puseste da saúde? ou as cartas para os tios de Lisboa

A avó começava a fazer o cerco muitos dias antes. Hás-de-me ir lá escrever uma carta para os teus tios", era a sentença repetidas as vezes necessárias, até me ter sentado numa cadeira, tendo à frente a mesa da sala e, nela, o papel da carta. A longa função ia começar! Na primeira linha, o local e a data, como mandava a regra: [Casal da Fraga, 12 de Maio de 1963]; nas seguintes, o [Meus queridos filhos] da ordem e os dizeres da saúde: [estimo que ao receberdes esta vos encontrais (sic) de saúde, na companhia de quem mais desejardes. Nós cá ficamos como Deus permite]. Ao lado, então, a avó já dormia, cumprindo-se, também nisso, o ritual associado às cartas para os tios, umas três ou quatro vezes, se tanto, em cada ano.
- Avó?!
E ela abria os olhos, para dizer:
- Já puseste da saúde? Diz que nós estamos bem.
E retomava o fio do sono, para desespero do infante-escriba, afrontado com a urgência do regresso à brincadeira.
- Isso já está, . Diga lá mais.
- Lê lá.
E ele lia aquele nada que estava escrito, avaliando o escrevente que, das quatro páginas do papel de carta, ainda nem uma estava meia. E a avó já dormia outra vez. Quando é que ele ia conseguir sair dali?
- !
- Han? Ah, sim, diz que nós estamos bem.
- Já está, ! O que é que escrevo mais?
A avó pensava um bocadinho e dizia, passando a mão esquerda pelos olhos e descendo-a pela cara:
- De noite, tinha assunto para quatro ou cinco cartas; agora não me vem nada à ideia. Diz que recebemos a carta dele e assim [Recebemos a vossa carta e por ela soubemos notícias e como estavam todos bem e com saúde, graças a Deus] e com isto se enchia a página da frente da carta.
Numa sacudidela, novas queixas da avó pela falta de assunto. E a função longe, longe de acabar.
- , agora escrevo na folha a seguir ou salto?
- Como não me lembro o que é que se há-de dizer, salta logo para a outra. Pergunta lá se têm visto os teus outros tios.
Mansamente, a avó retornara ao sono e ele a não querer esquecer nenhuma palavra, que todas eram precisas para compor uma missiva com o mínimo de dignidade. Deixando em branco as quatro ou cinco primeiras linhas, escrevia: [Então tendes lá visto os vossos irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas, sobrinhos e sobrinhas e restante família? Então e eles estão bem? Estimo que estejam todos com saúde. Quando os voltardes a encontrar, dai-lhes recomendações nossas e dizei-lhes que temos muitas saudades de todos e que não se esqueçam de escrever à mãe e ao pai.]
- , já escrevi dos tios.
Depois de uma pausa longa, acordada, a avó tornava-lhe:
- Ai que não me lembro mesmo de mais nada! E estou aqui a perder tempo, com tanto que fazer. Ainda tens muito para escrever? Deixa o resto dessa folha e passa logo para a última. Manda-lhes as despedidas, minhas e do avô.
[Sem outro assunto, despeço-me por hoje...]
O das letras nem cabia nele, gritando por dentro: "Malta, eu vou já para aí, é só acabar isto!"
[... com muitos beijos para todos, para os vossos filhos e restante família e cumprimentos a quem por nós perguntar. Recomendações e saudades do vosso pai e da vossa mãe, que vos deitam a benção, Francisco e Maria do Rosário.]
- Já está, !
- Já acabaste? Lê lá tudo.
E ele lia, ligeiro, com um pé já na escada, a avó acordada o tempo todo.
- Está bem - dizia ela. - Agora só falta fazer o envelope com a direcção. Onde é que eu guardei a carta que eles mandaram?
E levantava-se para ir à procura na gaveta dos garfos e das colheres, na mala da roupa, no baú do enxoval da tia mais nova, na mesa de cabeceira, no vão do postigo do quarto, em cima da mesa, ... em todo o lado, já a repetir os sítios. E era então que ele deixava de ouvir, lá fora, as vozes dos companheiros de bola.
"Lá se foi a desforra!"
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SOPA DE CEBOLA

Ingredientes:

3 cebolas grandes

2 colheres de sopa de manteiga

1 colher de sopa de farinha de trigo

250 g. de fatias finas de pão

125 g. de queijo de bola

Queijo do Alentejo ralado, caldo de carne e sal - q.b.

Cortam-se as cebolas em rodelas finas e cozem-se lentamente na manteiga, até começarem a corar.
Salpicam-se com a farinha, mexem-se e cobrem-se com bastante caldo.
Deixe ferver 10 minutos, para apurar.
Num tabuleiro Pyrex põem-se em camadas alternadas as fatias de pão torradas, fatias de queijo e colheradas de caldo com as cebolas, até terminarem os ingredientes secos.
Cobre-se tudo com o resto do caldo feito com as cebolas, que é indispensável ser abundante para as sopas não fiarem secas e duras.
Polvilha-se por cima com o queijo ralado e mete-se em forno forte durante 15 minutos para a superfície gratinar.


domingo, 5 de abril de 2009

Azul ou vermelho, as cores da escrita, e depois a sopa de favas

A escola era ali na Praça, o centro do mundo conhecido, que a distância ainda estava por descobrir e o infinito do céu terminava, afinal, no recorte ondulado dos cabeços e vales da serra em volta.

Ela sentava-se à secretária; atrás, na parede, os dois presidentes - à direita, o do Conselho; o da República do outro lado, um Cristo crucificado entre ambos. E ela escrevia, numa letra notável, cheia, redonda, de uma regularidade impressionante. Que espanto vê-la a escrever, a caneta preta e verde feita pincel de artista, o traço rigoroso, mas fluente, lançando ao papel palavras azuis, pontos, vírgulas e outros sinais.

Que escreveria ela, a professora, tão compenetrada e séria, convertendo o acto num exercício de enorme gravidade? Quando escrevia, ela não estava ali; era como se tivesse entrado em outra dimensão, numa imaterialidade sem tempo, imune à devassa de uns olhitos deslumbrados (seriam os únicos?) numa carteira da fila da frente. De vez em quando parecia despertar e, numa meia ausência, passava o olhar pela sala e repreendia algum, se necessário; ao dos olhitos, perguntava: "Então, não fazes o teu desenho?" E ele submetia-se, momentaneamente, para, logo depois, voltar ao mesmo. E isto haveria de se repetir, uma e outra vez, até ela dar a obra por acabada, numa profusão de azul cosida ao branco do papel.

O traço, ao meu pai, saía-lhe visivelmente mais espesso, tanto na pedra, como na madeira. O lápis grosso afiava-o com a navalha. Gostava de lhe ver o encarnado na orelha (o azul, nem tanto), como em tempos vira ao senhor Fernandito, mestre carpinteiro de tectos e soalhos, o número um na armação do forro de uma casa. Ainda estava para nascer outro igual. O primo Clemente até podia sê-lo, não fora o estrago que nele fazia o vinho, e, pior, nunca se lhe viu um lápis na orelha, sequer na mão - riscos, se era preciso serrar direito, fazia-os com um prego. Uma heresia!
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SOPA DE FAVAS

Ingredientes:

1 kg de favas
1 cebola
3 colheres de sopa de azeite
50 g de arroz
Sal q.b.

Leva-se uma panela ao lume com o azeite e a cebola picada, deixando refogar.
Junta-se a água necessária e as favas descascadas e lavadas.
Tempera-se com sal e deixa-se cozer.
Finalmente, deita-se o arroz, deixando acabar de cozer.

sábado, 28 de março de 2009

Sopas de memória, com alguns versos

Escreveu o poeta:
Trago os tordos na cabeça desde os campos
d’Atalaia para pôr neste poema –
o vento deixava-nos à porta
ora uma luz rasteira ora um esfarelado
chiar de carros de feno,
dos ramos altos
a tarde caía nos cabelos,
vivíamos sem pressa rente aos lábios.
(Eugénio de Andrade – Trago os tordos na cabeça, in O peso da sombra, 1982)
Quanto eu gostava de ter escrito isto!
Ou de saber aparelhar uma pedra, a golpes certeiros, nas mãos o pico bem aguçado, como vi o meu pai fazer, tirando da massa inerte e bruta do granito um banco de sentar ou os cunhais de uma casa.

Ou de saber fazer, à enxada, uma leira de cebolas, como só o meu avô Teodoro era capaz - uma obra-prima de geometria: regos direitos e cômoros em rigorosa simetria, a terra tão lisinha que parecia ter sido afagada com as mãos.

Abençoadas as mãos que têm o dom da poesia. Assim o disse Eugénio:

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.
(Eugénio de Andrade – A arte dos versos, in Rente ao dizer, 1992)
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ALGUMAS SOPAS
Algumas sopas, de memória: a miga de batata, em casa da avó (tão desenxabida, meu Deus!), as sopas da Semana Santa, lá em casa, tão detestáveis como a sopa de favas; a sopa de feijão pequeno (a mãe ficava triste só de pensar nela), a sopa de beldroegas descoberta na primeira ida ao Algarve (lá em casa, as beldroegas só serviam para dar ao porco), o caldo verde que não comi enquanto usei bigode, e a sopa da matação, obrigatória em dia de matança do porco.