domingo, 8 de maio de 2016
quarta-feira, 20 de abril de 2016
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
O que escreve direito por linhas tortas
quarta-feira, 17 de agosto de 2011
Falta de tempo para ler
“Eu também havia de ler muito, não fosse a falta de tempo e o facto de os livros serem tão caros”. Ernesto J., meu amigo.
Regresso à Biblioteca Municipal, depois de cumprida a penalização de 43 dias, por atraso na entrega dos livros do último abastecimento. Leitura para o fim-de-semana de três dias – escolha criteriosa e por isso demorada, que resultou em quinhentas e tal páginas de prosa distribuídas por quatro ou cinco volumezitos daqueles que ainda se conseguem meter numa pasta de estudante já cheia.
Andei de estante para estante, ao acaso, cultivando a dificuldade da escolha – primeiro, o périplo dos americanos (lembro-me de Roth, Cummings, Cormack e de ter passado, altivo, ao lado de velhas glórias em que costumo reincidir, como o Hemingway e o Saroyan; eu procurava o “Manhattan Transfer”, do John dos Passos), demorando-me depois nos europeus – os russos (está em projecto um retorno em força ao Dostoiewski, depois dos “Contos de São Petersburgo” acabados de ler) e outros que mais, ou autores-refúgio como o Coetzee, o Sarat Marai ou o Chatwin (“Anatomia da Errância”, nunca lido, está na lista dos próximos). As escolhas acabaram por ser um (velhito) Alberto Moravia – “Passeios africanos” (1987), conjunto de notas de reportagem de uma viagem em África, ainda jovem, como jornalista, por terras da Tanzânia, Gabão, Zaire e Zimbabwe –, “A linguagem dos pássaros” (2001), o primeiro de Ana Teresa Pereira que entra cá em casa, ficando em carteira algum mais dos que escreveu, com destaque para um volume de contos, e mais dois autores-refúgio: Paul Bowles (“Muito longe de casa” (1992), com paisagens, cheiros e gente da região do Niger, e Guillermo Cabrera Infante.
“É tudo um jogo de espelhos” (1999), do autor de “Três tristes tigres” (1964) ou “Havana para um infante defunto”(1979), entre outros, revelou-se, afinal, um livro de contos já lido, dando a este Pepe (que é uma forma de dizer José, em espanhol) a oportunidade de revisitar três histórias, daquelas de guardar: a primeira, de José Castro Espinoza, o tio Pepe de “O meu personagem inolvidável”, notável pela arte de ler jornais, pela sua boa voz, ouvido musical e o amor desmedido pela ópera, o seu interesse pelo desporto, a obsessão pela cultura e o fanatismo pela higiene corporal; oficial de detecção de fraudes, foi um fanático germanófilo e um incondicional da revolução cubana, tendo morrido em casa, de um problema cardíaco, um tempo depois de ter sido vingada a sua morte às mãos de uns índios mexicanos ainda fiéis a ritos canibais dos antigos maias; a segunda, tão verdadeira quanto pode ser uma história contada por uma sogra chamada Carmen, em cumprimento de uma promessa à Virgem do mesmo nome, chama-se “A voz da tartaruga”, na realidade uma caguama, cujo sexo – quase de mulher – deu fama a um rapaz da aldeia; a terceira e última trata de duas bengalas, ainda que o título só tenha uma: é a “História de uma bengala e algumas observações de Mrs. Campbell”, contada primeiro pelo senhor Campbell, escritor profissional, e corrigida, depois, pela sua senhora, Mrs. Campbell. Recomenda-se.
Escrevo na manhã do terceiro dia, que vou dedicar ao volume que resta por ler, o do Moravia. Se não se revelar de boa colheita, volto ao “Dublinesca”, do Enrique Vila-Matas, trazido de Bilbao este mês e já encetado.
terça-feira, 19 de julho de 2011
Aos inocentes patifes que puseram o colhão do Almeida na literatura universal
Para o Abel Martins
Conheci o Almeida no meu primeiro dia de vida profissional, sentado numa cadeira de pau, no seu posto de trabalho, com aquele vulto entre as pernas, salvo seja. “Já viste o colhão do Almeida?”, perguntou um dos rapazes a meio da tarde desse mesmo dia e eu disse que sim, com um certo acanhamento, ouvindo-se então um coro alarve de palavras fora da etiqueta, com muitos gestos a condizer, que me fez sentir bem naquele meio e membro do grupo de corpo inteiro.
O senhor Almeida era um homem de monossílabos e linguagem atabalhoada, em que aprendi a distinguir as palavras exactas a colocar nas requisições, como resma de papel almaço, “escamartilhão”, tinta para almofada de carimbo ou pasta forrada a papel diabo, com ferragem; na nossa ingenuidade dos dezasseis ou dezassete anos, dávamos-lhe a idade da sé de Lisboa, um tempo aliás suficiente para o seu particular adereço adquirir a envergadura conhecida por todos, granjeando ao seu distinto possuidor os nossos maiores respeitos. Era de admirar que só tivesse uma filha, e não se sabe quanto orgulho tinha no seu material.
Também eu levei um ou outro, dos que entraram depois na empresa, a ver aquela digníssima peça; Almeida arreliava-se com isso, e, nesses momentos, os seus monossílabos transformavam-se em palavrões medonhos em forma de balas arremessadas por um titã justiceiro, mas na verdade muito injustos para com os inocentes rapazes.
Com o passar dos anos, mais avinagrado ia ficando o Almeida. Um dia, com o prazo de validade há muito ultrapassado, disse “até amanhã”, como de costume, e não voltou ao Economato, passando à condição de reformado. Foi-se o homem com o seu adereço, mas deixou deste a memória, que nós tomámos como missão preservar na sua autenticidade e espalhar por onde pudéssemos. Quantas conversas entre nós, sobre o colhão do Almeida, e quantas vezes a história foi contada a terceiros, que a contaram a outros, que a contaram … sabe-se lá onde e a mais quem – do velho, do novo, deste e, calhando, até do outro mundo.
Até que, um dia, de mansinho, o tivemos de volta, em forma e na maior dignidade, aos ombros de Gabriel García Márquez, em “O Amor nos Tempos de Cólera”. Sai prosa:
“À água das cisternas foi atribuída durante muito tempo e com muita honra a hérnia do escroto, que tantos homens da cidade suportavam não só sem pudor como ainda com uma certa insolência patriótica. Quando Juvenal Urbino ia à escola primária não conseguia evitar um arrepio de horror ao ver os herniados sentados à porta das suas casas nas tardes de calor a abanarem o testículo enorme como se fosse uma criança que lhes tivesse adormecido entre as pernas. Dizia-se que a hérnia emitia um pio de pássaro lúgubre nas noites de tempestade e que se retorcia com uma dor insuportável quando queimavam por perto uma pena de galináceo, mas ninguém se queixava daqueles percalços, porque uma hérnia grande e bem conservada ostentava-se como um apanágio de homem.”
Mesmo quem nunca tivesse conhecido o senhor Almeida seria capaz de reconhecer neste excerto o colhão do velho ecónomo, que nós celebrámos durante tantos anos, e cuja fama conseguimos, sem desfalecimentos, levar tão longe e com tanto sucesso, ao ponto de torná-lo matéria-prima da melhor literatura.
Num mundo mais justo, Almeida haveria de descer à Terra, para agradecer aos inocentes patifes que, por muito falarem no colossal adereço, fizeram do seu titular personagem de romance.
Crónica de um pedaço de asno confirmado e de duas histórias por contar
Começava assim, sem mais nem menos, a última carta do Migo, que aqui dou por recebida e, pelo presente escrito, formalmente respondida. Para que conste. E dizia mais:
“Nem hás-de acreditar, mas até tem piada: agora durmo no meio dos livros, estás a perceber, rodeado de livros por todos os lados! O que tem o seu quê de problemático: numa abundância destas, para não me dispersar,sou forçado a uma disciplina de regulamento, focando-me no livro que tenho entre mãos, como se fosse o único na casa. Mas, sem deixar de praticar em vários, se for caso disso – que é mais ou menos o costume. Segue a ementa desta quinzena.”
Respiro, enquanto ele muda de linha e de parágrafo.
“Como livro de cabeceira, o quarto de crónicas, do Lobo Antunes (antes, hei-de ter lido dois dele, dessa especialidade), duas crónicas por dia, não mais que duas – uma à sossega, tipo chazinho para relaxar, antes de dormir, e outra ao ‘mata-bicho’, ainda na caminha, logo que se faz de dia. Numa das últimas que li, o grande Borges, em certo momento, diz à mulata ‘de madeixas desfrisadas e nádegas de alcatruz’ ‘sua jeitosona’, ‘ela a fender o alcatrão numa majestade de petroleiro a sair da barra’; a próxima, para logo à noite é sobre as missas em Nelas. Sabes que o homem faz traduções de latim para manter os neurónios oleados? É o que ele diz, como se a escrita não fosse exercício mental suficiente.”
Mais uma pausa, ponto e parágrafo.
“O livro de sair é ‘O Amor nos Tempos de Cólera’, do velho Gabo, numa ediçãoda Dom Quixote, com alguns erros pelo meio, mas bom!, bom!, bom! Se o céu se ganhasse com escrever bem, sendo Deus imensamente justo e bom, como é suposto, a Gabriel Garcia Márquez bastaria este livro para ingressar na eternidade – ainda que ele fosse o maior dos pecadores. Que história bem contada, que escrita magistral, que prazer ler uma prosa assim! De tal maneira que uma pessoa está a ler e até parece que está dentro do livro, não como personagem, mas como se o livro tivesse sido escrito por mim. Estranho, não é, Tê? O Cardoso Pires – meu oráculo nestas coisas de escritas e de livros – classificou-o como o melhor romance jamais escrito. Anda comigo todo o dia e uso-o quando posso – no intervalo entre a sopa e o bacalhau do almoço, na travessia de barco para Cacilhas ou enquanto uma reunião não começa. Um prazer imenso, que é o que deve ser a leitura, no antes e no depois de um juramento de fidelidade eterna e de amor para sempre, repetido ao fim de um interregno de cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias depois, na primeira noite de viúva daquela que fora a prestimosa esposa do doutor Juvenal Urbino, o médico que logo no princípio do livro vemos a perder a missa do domingo de Pentecostes, em tarefas de validação da morte de um tal que se matara com cianeto de ouro, num quarto com cheiro a amêndoas amargas, precisamente no dia em que o (também) doutor Lácides Olivella celebrava, com um almoço de gala, as suas bodas de prata profissionais. Vou a pouco mais de meio.
Este, como disse, só o leio fora de casa, nos dias de trabalho – faz parte da farda.”
Tanta explicação, meu Deus! Vá lá, digo eu, fecha o assunto, meu amigo – que, se não me engano, ainda há mais livros.
“Agora vem o mais curioso – e eu sei que tu achas piada a isto: sem nenhum objectivo em especial, peguei no “Viver para Contá-la”, um escrito autobiográfico do próprio Garcia Márquez. Umas centenas de páginas com histórias da vida do homem, desde a infância à idade adulta, com uma leveza, uma graça, uma qualidade de escrita que só lendo. Com a particularidade de aí aparecerem personagens e episódios (a mulher que come terra, ou o velhote que fabrica peixinhos de ouro, ou a sensação da mão que se pôs num bloco de gelo) que encontramos, um tanto mudados, na ficção do autor, designadamente no ‘Cem anos de Solidão’ ou – como vou descobrindo por estes dias – em ‘O Amor nos Tempos de Cólera’. Este, leio-o na casa de banho lá de casa, invariavelmente, antes (à noite) e depois (de manhã) das crónicas do doutor Antunes.“
Eu não dizia? Precisamente. Para continuar assim:
“Lembras-te do jogo que a D. Natália punha os inocentes da Primária a fazer em “Geografia de Portugal”, com o Thomaz e o Salazar pendurados na parede em frente? Aquele assim: ‘um pedaço de terra, rodeado de água por todos os lados, é uma ilha; um pedaço de terra rodeado de água por todos os lados, menos por um, é um cabo; um burro rodeado de cabos por todos os lados é um sargento; um pedaço de água, rodeado de terra por todos os lados, é um lago; um homem rodeado de terra por todos os lados é um morto; um pedaço de água, rodeado de terra por todos os lados, menos por um, é um istmo.’ Adivinhasse eu que haveria de dormir nestes preparos, havia de ter-lhe perguntado como se designa um homem que dorme rodeado de livros.
Que há-de ter um nome, não é, Tê?”
Continua a ser o que era – no caso, um pedaço de asno, quase gritei, farto de conversa.
Agora já mais calmo: continua a escrever, Migo, e manda lá aquelas histórias de que falas. O teu amigo merece!
domingo, 1 de maio de 2011
Ainda na pista de Javier Mariño - A paixão das primeiras edições assinadas (parte 2)
No Lindoso, não havia onde pôr um pé e a animação era grande. Sentámo-nos perto da entrada, bem apertados, por falta de espaço, e ele encomendou bebidas – uma vez, outra e não sei quantas vezes mais, sempre ele; a mulher que trazia as bebidas, com um vestido azul a denunciar-lhe a barriga indecente e o excesso de carnes, não tinha um minuto de descanso, entre actos de serviço “sempre-a-aviar” e respostas aos desafios e apreciações que lhe chegavam de todos os lados – tudo no maior respeito, pois sendo a casa de gente séria, ali não se admitem faltas de respeito a quem trabalha. Um pouco aturdido com o ambiente, bastante quente e suado para o meu gosto, praticamente sem espaço para me mexer, que me deixei ir na conversa, quando se desatou a língua ao meu companheiro. “Não sei já te falei dela”, começou ele, em tom meio íntimo, demasiado próximo do meu ouvido, referindo-se à mulher que todas as quintas-feiras à noite fazia encher aquele bar da travessa de Agua de Flor, ao Bairro Alto em Lisboa. Tinha sido por ela que o ex-futuro padre me levara ali, e eu convencido que ia por causa do Guedes e do “meu” livro de don Gonzalo.
Tinha o nome de Rosa e uma cara que era só olhos – grandes, provavelmente cinzentos, capazes de cegar um pobre com fome. Movia-se com grande à-vontade entre todos aqueles homens, na cara um ar místico digno de Santa Juana de la Cruz. Não parecia ser mulher daquele tipo de ambientes; de igreja, sim, sem dúvida.
Extraordinária a altivez daquela mulher, movendo-se entre as mesas apinhadas de homens, todos a quererem ser servidos por ela, batendo-se por uma palavra sua ou por um olhar, comendo-a com os olhos, ela tão inacessível quanto desejada. Vinha todas as quintas-feiras, depois das onze, quando a casa já estava a rebentar pelas costuras e nessas noites trabalhava-se até muito mais tarde, as bebidas e as mulheres, mesmo as mais velhas e gastas, sempre a saírem.
Frequentava Santa Isabel; sendo nova na comunidade, era estimada por todos; sabia-se que, durante a semana, cumpria um estrito programa de boas obras, visitando os doentes. Fiel ao mandamento de “não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita”, guardava recato sobre essa espécie de penitência, que não deixava de intrigar mentes mais analíticas, antes mesmo de o número de doentes (homens) acamados da paróquia ter aumentado duas vezes, uma torpeza a ser desmascarada no futuro.
Chegou a bichanar-se que ela se deitava com eles, os velhos das casas aonde ia, ou lhes mexia por baixo dos cobertores e até se falava de quanto recebia por cada visita e de coisas que lhe davam e das propostas para lhe porem casa, comentários a que ela respondia encolhendo os ombros, sem dizer nada, cada um ficando no que lhe parecia. Que, em boa verdade, até eu, depois de a ver, tenho a certeza de que, mesmo velho, só um cego não se quereria deitar no mar daqueles olhos, inquestionavelmente verdes para uns, para outros sem dúvida azuis, nem que fosse para neles se perder.
Que nada disso, confessava-me o "padre" Agostinho, à saída do Lindoso naquela quinta-feira: ela ia às casas dos velhos para lhes fazer companhia, se já não podiam sair de casa, a dar-lhes conversa, com a bênção da família chegada, num caso ou noutro a ler-lhes as passagens dos seus romances preferidos ou de algum velho livro de religião, tudo – sempre – na maior decência; se tanto, uma carícia nas costas da mão, descendo do pulso até à ponta dos dedos, ou uns afagos por cima da roupa de quarto aos acamados, mas sempre – ele podia jurá-lo – na maior pureza de actos e pensamentos.
Num excesso de intimidade, foi explícito sobre os seus planos de vida a dois, com ela, no recato de Santa Rosa do Douro, ou do Zêzere, não estou certo; senão, que se havia de matar. Na despedida, perguntou-me pelo Guedes, se sempre o tinha encontrado, para acrescentar com a dignidade e convicção possíveis num bêbado: “Depois de te falar dele, da outra vez, soube cá umas coisas do tipo, que espero sejam mentira; se não, vai ser muito mau para ele. Palavra de Agostinho.”